“Durante aqueles revoltos dias subsequentes, senti inúmeras vezes o perfume acidulado da velha Dama da Gadanha, aquela que anda de mão dada com o Tempo desde os primórdios da vida. Quis inalá-lo, quis tornar-me poalha inerte, quis regressar à quietude desapossada da não existência; talvez assim as cordas de mim mesmo se reintegrassem serenamente na grande sinfonia universal… Depois instalou-se um entorpecimento resignado, pútrido vómito daquilo que fui (e que hei-de voltar a ser, não sei quando nem como), a alma peganhenta escorrendo, viscosa, para uma poça de letargo. E sobreveio uma pirexia avassaladora, o corpo cedendo por fim ao cansaço dos longos dias de uma vigília inquieta, o sono decrescentemente delirante aliando-se à mente para que a lucidez fosse recuperada. Busquei o equilíbrio extraviado por entre as memórias pretéritas e as perspectivas futuras, tentando abstrair-me do presente através de uma intensa pesquisa na vasta base de dados da cápsula, regressei aos cálculos num esforço solitário, desistindo de conferenciar com a I.A. cuja conduta se assemelha a uma obstinada e contraditória teimosia. Por fim, num lampejo fortuito, é-me desvelada a forma de escapar ao aprisionamento neste lugar ermo e ultrajante, numa fórmula tão inusitadamente simples quanto fascinantemente eficaz…”
“O calendário diz-me que treze dias terrestres estão transcorridos e, contudo, a realidade apresenta-se obstinadamente discordante. O Tempo imobilizou-se num emaranhado de sentimentos antinómicos, o humor alternando entre a resignação apática e uma irascibilidade quase violenta, os raros momentos de serenidade sendo aproveitados em cômputos cujos resultados me parecem cada vez mais inverosímeis. A insónia tem-me atormentado sobremaneira, a mente ressentida da privação do repouso parecendo recusar-me a profundidade de reflexão tão necessária à superação da crise em que me vejo envolvido. Erro de trajectória ou insólita deformação do espaço-tempo, defeito nos sistemas de orientação ou incúria da I.A. na efectivação das imprescindíveis correcções para conservar a nave no plano de voo antecipadamente estabelecido? Talvez tenha sido uma conjugação de factores adversos e de circunstâncias invulgares a trair as expectativas, provavelmente elas próprias excessivas, a ousadia de acreditar em futuros risonhos fazendo-se pagar bem cara com decepcionantes reveses… E agora, um indeclinável conflito intestino agiganta-se por entre os meatos quase vegetativos da entidade em que me tenho vindo a tornar, ameaçando rasgar o que resta da inteireza…”
“…é algo de infinitamente profundo e intrínseco, a natureza precisando de uma medida que quantifique a negação da própria eternidade...”
V.A.D. (s)em Tempo
Video: The Flow of Time – In a Cradle (Rentrer en Soi) (www.youtube.com/watch?v=eaKP9QbDeGM)
O tempo é uma misteriosa entidade, da qual temos apenas uma rudimentar e vaga concepção. É infinitamente mais do que os incomplexos resultados do seu constante fluir, é decididamente algo muito mais profundo que a concepção que nos é proporcionada pelo senso comum ou pela natureza das leis biológicas. Integra o próprio tecido básico do Universo onde vivemos, é irmão gémeo do espaço e nasceu no instante primevo em que, de uma singularidade, dimanou tudo o que existe, matéria e energia libertando-se do confinamento quântico numa inflação desmesurada. Influencia a nossa vida sob todos os aspectos, desde os mais simples e moderadamente controláveis até aos que estão completamente fora da nossa autoridade, sendo a lenta mas contínua caminhada na direcção da velhice ou a inexorável passagem dos dias exemplos dessa nossa inabilidade para o manipular. É subjectivo e desigual, a velocidade agindo como causa de uma estranha variabilidade, aquilo que fazemos dando-nos a impressão de que ele se escoa de forma inversamente proporcional ao nosso apaziguamento. Talvez escorra pelos interstícios dos grânulos espaciais como areia numa ampulheta, mas não é eterno. A eternidade é mais estranha: é o lugar onde o tempo liminarmente cessou…
Imagem: Tempo (http://sprott.physics.wisc.edu/fractals/collect/2000/time%2520out.jpg)
“Olhei demoradamente através da translucidez do vidro, a janela do hotel virando-se para o deserto que se assenhoreara da vastidão, quilómetros e quilómetros esvaziados de vida assemelhando-se à inanidade de mim mesmo. As inumeráveis dunas, enchendo a paisagem fastidiosa do meu descontentamento, elevavam-se como pirâmides caoticamente desfeitas, os dias sucedendo-se na cadência lenta das alvoradas tépidas e das tardes infernais, o trabalho bem pago progredindo de acordo com o previsto, a chuva ausente havia meses levando-me, pelo crepúsculo, ao delírio onírico de rios transbordantes e de gotas geladas, caindo do céu de Março em manhãs húmidas e cinzentas de latitudes médias. Virei o meu olhar para a imagem impressa na brochura, a quimérica clepsidra de Karnak transportando-me até aos dias de glória e prosperidade daquela terra agora tão diferente, Amen-hotep III governando aquele país antigo, o nono faraó da décima oitava dinastia patrocinando a contagem de algo tão precioso quanto a água, a vã tentativa de o dominar o tempo levando à construção do dispositivo primevo, tão distante dos relógios de césio quanto apartada de mim estava a felicidade. Mas o tempo fluía indómito e imparável, o líquido cristalino vertido pelo orifício de uma clepsidra imaginada declarando o avizinhar do momento em que retornaria a casa…”
V.A.D. em Clepsidra
Imagem: Clepsidra de Karnak (www.arqueoegipto.net/articulos/egipto_tematico/calendario.htm)
Suspendo o tempo nos fios da vontade, seguro os ponteiros do relógio que imagino, recuso o escoar dos segundos, não o quero para mim. Crio nas minhas mãos a eternidade, pedaço de vidro cristalino, incontáveis e estranhos mundos, conjectura de espaço sem fim. Brinco no centro galáctico, inundo-me de emoção e pasmo, perco-me num labirinto inventado, entre estrelas e quasares. Nada no cosmos é estático, encho-me de exaltado entusiasmo, não há segredo que não seja revelado, todos os mistérios se tornam vulgares. Conheço a verdade e o seu inverso; tenho a vida inteira e mais um pouco para aprender o que há a saber. A mente funde-se com o Universo… (Eu sei, às vezes pareço louco, mas não há nada a fazer…!)
Imagem: Universo! (www.faemalia.net/USPictures/Backgrounds/universe.jpg)
“O tempo não tem significância, nem tão-pouco o espaço, a não ser quando para um ou para ambos acontece a apreciação do pensamento. E esse prossegue continuadamente, conquanto a vigília aparte a mente dos oblívios profundos de um sono sem sonhos, jogos de luz e fulgurantes sons arquitectando o entendimento, o sentir convertido em imagem, a diáfana essência da verdade sendo tocada ao de leve…”
V.A.D. em Algures
Vídeo: Mind Games (John Lennon) (http://www.youtube.com/watch?v=8dHUfy_YBps)
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