Epílogo
“Dormíamos pouco. A evolução não lhe havia cerceado o desejo; apenas pela madrugada permitíamo-nos ceder ao sono melifluamente exausto das noites repletas de descobertas e transbordantes de suores. Os dias eram preenchidos. Ocupava-me entre a universidade onde leccionava história arcaica e o instituto de tecnologia, os meus conhecimentos ajudando na empresa de construir um dispositivo que rompesse controladamente a cadeia temporal, o passado afigurando-se-lhes a única forma segura de escapar à morte pelo fogo estelar, o escudo de protecção na origem das minhas peripécias sendo agora uma ideia posta de parte.
Alguns anos depois, a máquina foi aprontada e voluntariámo-nos para a viagem experimental, a época que me havia visto nascer sendo o destino escolhido, a possibilidade de voltar a estar sob a amarela luz do Sol de meia-idade preenchendo os meus sonhos, ela sentindo uma imensa curiosidade acerca do meu mundo e da minha espécie. Desde então, temos passado muito do nosso tempo na velha Terra. Se, numa ocasião qualquer, sentirem que estão a ser vítimas de abdução, não temam. Os médicos pretendem apenas conhecer aprofundadamente o metabolismo dos seres humanos. Se alguma vez virem um veículo aéreo com a forma de disco, é verosímil que seja eu a pilotá-lo. Às vezes, por brincadeira, desenhamos símbolos nas searas, os jactos frios do sistema de propulsão dobrando o trigo ou o milho em padrões lindíssimos. Usando este mesmo método, talvez venha a mostrar-vos um retrato meu.”
V.A.D.
Imagem: Retrato (original em www.greatdreams.com/crop/Chilboltonface.gif)
“Ela chegou, elegante e segura, o seu olhar cruzando-se com o meu, os sorrisos estampando-se nos nossos rostos numa demonstração de indiscutível cumplicidade, o abraço que lhe havia ensinado mostrando-nos a intensidade recíproca do afecto. Sentámo-nos sob a pequena árvore descendente das antigas palmeiras, o jardim do complexo habitacional onde agora vivia apresentando-se magnificamente cuidado pelos robots, o banco feito de uma espécie de espuma biológica moldando-se aos nossos corpos esguios e saudáveis, encostados enquanto contemplávamos silenciosamente o mar que se estendia sereno até ao horizonte, aquilo que fora o Atlântico fazendo parte do imenso oceano que rodeava de água o agora único continente do velho planeta. Observámos assim o crepúsculo, o sol vermelho enchendo de tonalidades quentes a atmosfera calma, o ar enchendo-se de coleópteros bioluminescentes num espectáculo que me fazia retornar à infância, os pirilampos parecendo ter encontrado o caminho para a continuidade da espécie. As nossas vidas haviam sido interligadas por circunstâncias inesperadas. Queria que esse entrelaçamento se aprofundasse e viesse a frutificar. Enchendo-me de audácia, virei-me para ela e coloquei-lhe enfim a questão que se insinuava há muito na minha mente e que havia calado tantas vezes. A resposta, imediata e calorosa, inundou-me de uma felicidade que chegara a supor estar-me irreversivelmente vedada…”
V.A.D.
Imagem: Pirilampos (https://farm4.static.flickr.com/140/376367551_7a1b2ad16b.jpg)
“Começara a arrefecer. A brisa de norte ia soprando para longe o sufocante calor daquela tarde estival, a tricentésima octogésima terceira noite da minha vida resgatada aproximando-se ligeira para trazer consigo a efeméride, um ano nesta idosa Terra prestes a perfazer-se. Ao longo dos evos, a órbita planetária havia sido alongada, a ténue mas contínua pressão de mais de dois nanopascal, exercida pela torrente de protões e electrões vinda da coroa solar, resultara num sensível afastamento do planeta em relação ao sol, o vento solar alimentando a magnificência das auroras e acrescentando dezoito dias ao tempo necessário a uma revolução completa do astro em torno da estrela-mãe. Não que isso importasse muito. A longevidade do corpo onde a minha mente agora se albergava era medida em milénios, a perspectiva de ter tempo para me tornar um deles abrindo-se risonha perante mim, a oportunidade de lhes ensinar o que sou revelando-se ampla. Ela aprendera já a apreciar o vento na pele e a sentir o cheiro das estações, descobrira comigo a beleza do voo das aves ao crepúsculo, percebera entre os seus dedos a delicadeza das pétalas de uma flor e ia-se maravilhando cada vez mais intimamente com estes pequenos nadas, a emotividade abafada por incontáveis séculos de racionalidade despontando de forma arrebatadora. Partilhara comigo alguns dos segredos mais recônditos da Natureza, os conhecimentos adquiridos ao longo de um pedaço de eternidade fazendo-me sentir um rotundo indouto, os enigmas mais antigos desvendando-se numa simplicidade feita de lógica e coerência. Compartia comigo a sua vida, as minhas mágoas diluindo-se num sentimento que se consolidava, a minha entrega fazendo-se progressivamente. Nunca iria esquecer o passado, mas estava disposto a usufruir da existência…”
V.A.D.
Imagem: Aurora Boreal (www.nossosaopaulo.com.br/images/Paisagem2007MAI_AuroraBoreal.jpg)
“O choque quis destruir a minha sanidade, os pesadelos inundando-me como volutas negras e acres durante a noite, uma catalepsia agonizante enchendo os dias que se seguiram à revelação da verdade, a mente agachada refugiando-se no beco escuro e sombrio do desespero, encurralada por um fosso que se abria, profundo e horrendo, e que a separava do tempo a que pertencia por direito próprio. Sentia-me irremediavelmente perdido, um estranho entre a sua própria descendência, as incontáveis gerações apartando-me, enquanto indivíduo, da espécie que já não era a minha, arrancado fortuitamente a um passado a que me via impossibilitado de regressar, atirado para um futuro onde não encontrava raízes. As semanas escoavam-se por entre interrogatórios fastidiosos e intermináveis testes psicotécnicos, a desalentada monotonia sendo apenas diminuída ao crepúsculo quando os olhar da neurocirurgiã se afundava no meu, o pretexto de verificar a minha condição servindo para justificar as visitas diárias que se me iam aparentando cada vez mais pessoais que médicas. Aos poucos, via-me a aumentar a fluência numa linguagem cujos étimos me eram bem conhecidos, a comunicação tornando-se cada vez mais fácil e apetecida. Íamo-nos esquecendo do tempo, embalados em conversas que se prolongavam mais e mais, a negrura do céu, suavizada pelo vermelho do sol retirado, servindo muitas vezes como tecto, a estranha ausência de Selene não obstando a um enamoramento crescente. Pensei muitas vezes nos poetas desta singular época, a merencória luz da lua não podendo figurar nos seus escritos, a literatura, embora empobrecida, não deixando por isso de glorificar o amor que sempre pode despontar entre dois seres…”
V.A.D.
Imagem: Sob o Céu (original em www.arthurdurkee.net/images/JTsunset5446w.jpg)
“Sou Fab’hio, o engenheiro. O quebra-cabeças tem vindo, aos poucos, a ser resolvido. O veículo alienígena fora mantido em órbita, um pequeno gerador de antigravidade colocado no seu interior servindo para estabilizar a trajectória elíptica até ser completada a análise microorgânica. As amostras recolhidas parecem ter gerado uma inusitada euforia entre os microbiólogos, a vasta flora compondo-de de bactérias e fungos trazendo novos dados que parecem confirmar a hipótese que tem vindo a ser aventada acerca da natureza e proveniência da nave e do seu ocupante. Apesar da transferência horizontal de ADN, a taxa de evolução microbiana é fundamentalmente inferior à dos organismos superiores, as notáveis similitudes entre os genomas de organismos autóctones e alienígenas sendo certamente explicadas por uma origem comum.
Finalmente, rebocadores especialmente concebidos haviam trazido o aparelho para a superfície planetária, dias e noites transcorridos sem que se desse conta da sua passagem, o fascínio associando-se à aura de antiguidade que parecia rodear a estranha máquina, a vontade de desvendar os segredos de uma tecnologia desapropriada levando a concluir da incongruência de uma viagem pelas lonjuras espaciais. Fora agendada uma teleconferência, as maiores sumidades destes tempos do fim dissecando as informações disponíveis, a grande comunidade científica focando todo o seu saber na empresa de solucionar o enigma. Do extenso relatório, avulta-se a singular conclusão de que uma disrupção temporal, provocada pelo ensaio do escudo protector, pode ter arrebatado a um tempo pretérito aquele ser indefeso, antepassado de nós…”
V.A.D.
Imagem: Nave (www.javierayuso.com/starwars/ships/NabooRoyalStarship.jpg)
“Sou Saf’tiah, a neurocirurgiã. A operação decorreu sem incidentes. Segundo os relatórios que o comando espacial fornecera, o único ocupante da nave alienígena acidentada fora encontrado sem sentidos, os sistemas de combate a incêndios havendo actuado antes que o frágil estrutura biológica tivesse cedido definitivamente aos horrores do fogo, a intervenção pronta da equipa de salvamento permitindo que a centelha de vida não se houvesse extinguido por completo. A injecção de sulfeto de hidrogénio levara aquele ser até ao misterioso limbo da animação suspensa, o metabolismo desacelerado permitindo a preservação da mente até que todo o encéfalo pudesse ser transplantado para um organismo estaminal, em tudo semelhante ao corpo de um de nós. Respondia aos estímulos, o sistema nervoso parecendo adaptar-se sem dificuldade à nova condição, os parâmetros da vida revelando-se estáveis, perspectivando uma recuperação a todos os títulos notável, tão notável quanto a semelhança genética que nos havia confundido a princípio.
Permanecem pouco mais de cem milhões de nós no planeta que viu nascer a nossa espécie, os restantes havendo partido há muito, requestando o futuro afiançado nas estrelas, num êxodo velho de milhares de milénios, os genes disseminando-se pela galáxia como uma epidemia de vida colonizando o desconhecido, o instinto de sobrevivência zelando pela continuidade. Quebraram-se os laços com o passado mais remoto, cataclismos de natureza diversa arrasando consecutivamente o edifício da história, destruindo o ensejo de confirmar de imediato o vínculo, que a minha intuição teimosamente afirma existir, entre aquilo que sou e o que aquele estranho representa. Anseio pela hora de o olhar nos olhos; quem sabe terei um vislumbre da sua verdadeira natureza…”
V.A.D.
Imagem: Encéfalo (http://thumbs.dreamstime.com/thumb_80/1156548884el1QEe.jpg)
“Sou Jon’hoh, o comandante. O nosso mundo está à beira do fim. Passaram-se já nove mil milhões de anos desde que a nossa estrela nasceu, a fase de gigante vermelha assimptótica havendo-se já iniciado há vários séculos, o colapso gravitacional resultante do esgotamento do hidrogénio no núcleo levando a um aumento da temperatura, a transmutação do hélio em carbono tornando-se factível, as camadas exteriores expandindo-se pela súbita pressão termodinâmica vinda do interior. É quase irónico, pensar que o elemento em que toda a vida conhecida se baseia esteja a ser criado desta forma, o processo que leva a esta génese ameaçando de extinção todo um ecossistema, o pagamento de um evo de vida sobre o planeta prestes a ser cobrado. Aprendemos a dominar os mais ínfimos aspectos da biologia, somos capazes de prorrogar a morte quase indefinidamente mas ver-nos-emos na contingência de abandonar o nosso lar definitivamente, antes de sermos obliterados pela fotosfera do astro moribundo, caso o escudo protector se venha a manifestar incapaz de alterar o destino.
As minhas cogitações são interrompidas, a hora do teste aproximando-se numa irreversível contagem decrescente, o gerador de radiações, posicionado algumas milhas acima da atmosfera, aguardando o premir do botão, os sensores da nave em voo sub-orbital apontados para o ponto onde a descarga terá a máxima intensidade. A sequência é iniciada e concluída com exactidão, o êxito parecendo reforçar a esperança no futuro. Subitamente, o imediato agita-se, alertando-me para um objecto improvável, escuro e danificado, surgindo no monitor como uma mancha informe…”
V.A.D.
Imagem: Planeta (original em www.natrium42.com/halo/flight2/thumbs/IMG_0461.jpg)
“A recordação das caras de quem amava perpassava-me pela mente, a nostalgia de tempos e lugares sabidos instilando-se dolorosa no córtex das emoções, o pontual desalento indignado de me saber perdido provocando aquela reacção. Os dedos ainda entorpecidos, a que me principiara a habituar, cerraram-se instintivamente, enquanto as pálpebras se fechavam, o ar asséptico sendo inalado profundamente num acto consciente. Resultava sempre. Resultara agora, a calma expectante regressando de imediato pelo anseio racional de iludir a desesperança em que me não podia deixar cair. Lá fora, a aurora dava lugar ao dia, a luz avermelhada crescendo de intensidade a cada minuto, deixando que as sombras se desvanecessem para que os pormenores daquele panorama alienígena se intensificassem. A vegetação rasteira e esparsa tinha algo de familiar, uma ou outra flor garrida contrastando com a predominância azulada de arbustos semelhantes a árvores enfezadas, enquanto à minha direita, mesmo no limite do raio de visão, construções soberbamente elevadas pareciam varar o céu sem nuvens, como arranha-céus numa qualquer grande cidade da Terra. Tantas eram as perguntas que me cruzavam o espírito, e tão arredia me parecia a perspectiva de obter respostas, a comunicação com os estranhos fazendo-se apenas por gestos, os fonemas trocados sendo-nos completamente ininteligíveis, os símbolos que haviam surgido numa das telas revelando-se-me indecifráveis, a pasigrafia não passando de um conceito isento de resultados.
Atrás de mim, o som distintivo da porta deslizante anunciou a chegada de alguém. Virei-me tão depressa quanto possível e apercebi-me da concentração estampada na face pálida, imberbe e oval da criatura obviamente feminina que acabara de entrar. Lágrimas de um contentamento incontido brotaram dos olhos que tomara por empréstimo quando, inesperadamente, ela se me dirigiu, a sua voz suave arrastando-se num sotaque carregado:
- Bom dia! Sou Fen’dah, a linguista…”
V.A.D.
Imagem: Arranha-Céus (original em www.mediaarchitecture.org/wp-content/uploads/2006/07/TurningTorso11.jpg)
“A missão, solitária e corriqueira, aprestava-se a chegar ao término, a velocidade orbital de mach vinte e cinco principiando a ser reduzida pelo atrito da alta atmosfera, a rápida desaceleração fazendo-se sentir em cada músculo já desacostumado do peso, o rasto do ar tornado incandescente inundando de uma intensa luz alaranjada a carlinga da pequena nave, a temperatura nos painéis cerâmicos do revestimento externo atingindo vários milhares de graus, o elevado ângulo de ataque impedindo-me de vislumbrar o continente europeu tingido pelo negrume da noite e o artefacto contra o qual o acaso quis que desse o embate. Ao violento estremecimento sucedeu-se o inferno das chamas, a serenidade atenta rasgando-se na violenta aflição de um mar de fogo que carcomia o corpo e o espírito em dentadas de padecimento, a perda de consciência sobrevindo apaziguadora, antecipando uma morte que se me afigurara indeclinável. Minutos ou séculos depois achei-me naquele estado: um ser vivente exonerado do seu próprio cadáver numa grata negação da ordem natural das coisas, a natureza humana residindo numa compleição desconhecida.
Sacudi as memórias, fixando a minha atenção naquela paisagem estranha, as águas de um oceano aparentemente morto espraiando-se numa cataléptica imobilidade, apenas aquilo que podiam ser leves sopros de vento encapelando aqui e ali a superfície escura das águas onde o vermelho da radiação se espelhava como sangue derramado…”
V.A.D.
Imagem: Reentrada (www.goingfaster.com/icarus/reentry2.jpg)
“Já não tinha preocupações. A esmagadora sensação de que o fim fora iminente havia sido extinguida, as dores excruciantes não passando presentemente de uma mera ilusão de formigueiro que se tendia a desvanecer, a terrível ideia de término definitivo dando lugar à utopia da eternidade. As necessidades básicas eram agora providas pela complexidão da maquinaria biológica arquitectada pelas hábeis capacidades dos meus captores, o corpo totalmente artificial abrigando o meu imo, a sede do meu raciocínio tendo uma nova morada, tão diversa mas tão incrivelmente cómoda. Olhei-me no polimento do metal, a acção repetida vezes sem conta nestes últimos dias trazendo-me de novo aquela aflitiva noção de não me reconhecer, o invólucro postiço confundindo os sentidos e ferindo a mente num choque que se renovava teimosamente mas que, contudo, se parecia atenuar à medida que o tempo passava. Forçara-me a aceitar esta nova condição sem compunções nem revoltas, uma espécie de gratidão nascendo da certeza de estar morto, naquele momento, não fora a intervenção atempada daqueles seres, tão terminantemente alienígenas quanto capazes de revelar uma benignidade que rareava entre os humanos. Virei-me para a translucidez da estranha parede que me separava de um mundo que me era totalmente desconforme, admirando a vermelhidão de um sol grotescamente grande que acabara de ser erguer para lá de montanhas e edifícios negros de sombra. Fiquei ali, de pé, deixando que a memória me conduzisse, numa reconstituição precisa dos últimos instantes da minha anterior existência...”
V.A.D.
Imagem: Sol Vermelho (original em http://static.desktopnexus.com/wallpapers/9677-bigthumbnail.jpg)
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