“Precisa de lá voltar, quer beber daquela água, nenhuma outra lhe mitiga a sede, um fascínio inigualável atraindo-o como se um extraordinário magnetismo exercesse um absoluto poder sobre a sua vontade. Necessita de regressar àquele lugar maravilhoso, onde o Tempo se escoa estranhamente depressa, mas onde cada instante assume contornos de eternidade. Nesse local, onde cada gesto adquire uma relevância inigualável, onde as utopias se realizam, a vida deixa de lhe parecer complicada, cada olhar alcançando a infinitude de um horizonte sem limites, cada toque convertendo-se num imenso oceano de sensação e sentimento. É um sítio indefinível, sem norte nem coordenadas, figuração de uma plenitude inenarrável, a Ultima Thule de um novo mundo de emoções…”
“Agora, as inenarráveis imagens que se vinham formando no córtex visual apresentam-se-me transmutadas numa realidade tangível, os sentidos despertos inundando a minha mente de impressões avassaladoras, a delonga havendo servido para tornar a flama latente numa deflagração incontidamente transbordante. Agora, os mais ínfimos recantos da minha mente são preenchidos por sensações de uma beleza e profundidade inimaginadas, um rio caudaloso transportando-me na correnteza dos estímulos até à foz de todos os êxtases… Agora, deslizo tranquila mas avidamente para um sonho de penumbras, as suaves luzinhas engastadas no tecto de madeira fitando-me num desafio atrevido, a música tocando baixinho num sensual e provocante murmúrio, a antecipação provocando o saboroso frémito que me percorre todo o corpo em intensos afluxos sanguíneos, numa espécie de ânsia roubada ao próprio desejo. Agora, descubro os sabores exóticos de especiarias, numa sinestesia de afagos, descortino a silhueta da incontida paixão nas feromonas que me dominam a existência, diluo-me na cálida e tempestuosa harmonia de uma entrega absoluta…”
Tenho fome do átomo que somos ainda, tenho desejos de momentos inacabáveis, conjecturam-se em mim genuínas utopias. Quero preencher as horas vazias de electroquímicos padrões, inescrutáveis, preciso sorver o que a vida me brinda. Tenho sede das alvoradas radiosas, dos dias de eléctrica tempestade, das tardes quentes da verdadeira existência, feitas de irrequietude e dormência. Quero repetir falhados projectos de saciedade, repletos de fundições espantosas… Já não sinto o frio dos pretéritos Invernos, coriáceos gelos derretem, agora, aliviando o peso das sombras ominosas. Reavivam-se flamas esperançosas, é-me muito menos incómoda, a demora: há realidades absolutamente eternas…!
“Arranco violentamente as conexões neurais que me aliam à I.A., os eléctrodos ligados ao transceptor de arsieneto de gálio implantado na nuca ficando irremediavelmente danificados, uma definitiva cessação das esparsas e inconsequentes comunicações parecendo-me a melhor forma de readquirir o domínio completo de mim próprio e da cápsula que me ampara. Revejo mentalmente o plano que decorre das conclusões matematicamente encontradas, reassumo o lugar de piloto que me pertence por direito e traço o rumo no ecrã táctil. Incontáveis qubits flúem do computador de navegação para cada um dos processadores quânticos associados aos inúmeros propulsores direccionais. Lenta mas inexoravelmente, o veículo alinha-se no sentido de rotação da ergosfera, o motor de antimatéria levado nessa altura à potência máxima em escassos vinte e três nanossegundos, um impulso milhares de vezes superior à massa da nave sendo desenvolvido quase instantaneamente. Parece paradoxal, eu sei, mas neste preciso momento atravesso a linha temporal no sentido antagónico ao percorrido por incontáveis googois de seres viventes…”
“Durante aqueles revoltos dias subsequentes, senti inúmeras vezes o perfume acidulado da velha Dama da Gadanha, aquela que anda de mão dada com o Tempo desde os primórdios da vida. Quis inalá-lo, quis tornar-me poalha inerte, quis regressar à quietude desapossada da não existência; talvez assim as cordas de mim mesmo se reintegrassem serenamente na grande sinfonia universal… Depois instalou-se um entorpecimento resignado, pútrido vómito daquilo que fui (e que hei-de voltar a ser, não sei quando nem como), a alma peganhenta escorrendo, viscosa, para uma poça de letargo. E sobreveio uma pirexia avassaladora, o corpo cedendo por fim ao cansaço dos longos dias de uma vigília inquieta, o sono decrescentemente delirante aliando-se à mente para que a lucidez fosse recuperada. Busquei o equilíbrio extraviado por entre as memórias pretéritas e as perspectivas futuras, tentando abstrair-me do presente através de uma intensa pesquisa na vasta base de dados da cápsula, regressei aos cálculos num esforço solitário, desistindo de conferenciar com a I.A. cuja conduta se assemelha a uma obstinada e contraditória teimosia. Por fim, num lampejo fortuito, é-me desvelada a forma de escapar ao aprisionamento neste lugar ermo e ultrajante, numa fórmula tão inusitadamente simples quanto fascinantemente eficaz…”
“O calendário diz-me que treze dias terrestres estão transcorridos e, contudo, a realidade apresenta-se obstinadamente discordante. O Tempo imobilizou-se num emaranhado de sentimentos antinómicos, o humor alternando entre a resignação apática e uma irascibilidade quase violenta, os raros momentos de serenidade sendo aproveitados em cômputos cujos resultados me parecem cada vez mais inverosímeis. A insónia tem-me atormentado sobremaneira, a mente ressentida da privação do repouso parecendo recusar-me a profundidade de reflexão tão necessária à superação da crise em que me vejo envolvido. Erro de trajectória ou insólita deformação do espaço-tempo, defeito nos sistemas de orientação ou incúria da I.A. na efectivação das imprescindíveis correcções para conservar a nave no plano de voo antecipadamente estabelecido? Talvez tenha sido uma conjugação de factores adversos e de circunstâncias invulgares a trair as expectativas, provavelmente elas próprias excessivas, a ousadia de acreditar em futuros risonhos fazendo-se pagar bem cara com decepcionantes reveses… E agora, um indeclinável conflito intestino agiganta-se por entre os meatos quase vegetativos da entidade em que me tenho vindo a tornar, ameaçando rasgar o que resta da inteireza…”
“Tremem-me as mãos, no meu semblante reconhecem-se esgares de um pânico que me esforço por controlar, o nó na garganta teimando em se não desfazer apesar de perceber agora o exótico lugar onde me vejo aprisionado, a dor instalada atrás dos globos oculares aturdindo-me, tolhendo-me numa apatia pestilenta que preciso de sacudir. Purgatório dantesco ou limbo kafkiano, este espaço em contínua revolução e desprovido de tempo desafia a loucura e corrói a sanidade, a singularidade para lá do horizonte de eventos parecendo rir-se sarcasticamente da imaturidade de quem queria a eternidade e agora não sabe o que lhe fazer. A própria I.A. demitiu-se da congruência que lhe era característica, num revérbero da consciência de que sei não ser despojada. Acha-se inábil para inverter a situação, diz-se incapaz de gerir competentemente as exigências a que se diz submetida, as contradições balbuciadas incrementando-me as dúvidas acerca da minha viabilidade enquanto ser equilibrado. Afinal, não reside nas minhas mãos o controlo efectivo do meu destino: na ergosfera o espaço-tempo é arrastado pelo campo gravitacional do buraco negro rotativo, a distorção assumindo contornos difíceis de analisar por um desprezível mortal…”
“Os meus olhos vagueiam pelos campos cósmicos desprovidos de estrelas, um frio glacial enregelando-me o sangue, um pavor desmesurado dementando-me o raciocínio e incapacitando-me de assimilar a magnitude do que me havia sucedido. Demoro-me pelas amplidões sombrias de um nada aparentemente dominado pela mais absoluta entropia, exilado do meu próprio Universo por forças muito para além da compreensão, perdido num referencial descaracterizado e isotrópico. Das profundezas da mente vai emergindo a indubitável e tenebrosa sensação de que não há por onde fugir, a cápsula que me sustenta mal suportando o esforço de manter operativos os sistemas, os mostradores piscando em alarmantes vermelhos e amarelos e a escuridão completa do exterior contribuindo para a absoluta desorientação em que me vou naufragando. Respiro fundo, perseguindo a serenidade que se me afigura esquiva, faço por ordenar os pensamentos e peço à I.A. que me elucide. Revela-se parca em palavras, o profuso fluxo de dados provenientes dos sensores ocupando-a talvez em demasia para valorizar a pertinência das minhas questões…”
“E vi o brilho despido do espaço, as imagens ainda gravadas na retina fazendo-me perceber a mortalidade intrínseca, levando-me a aceitar a minha própria exiguidade face às incomensuráveis vastidões daquele prodígio. Sentei-me a um canto do compartimento gratificantemente finito, os joelhos envolvidos pelos braços, o tronco vergado pelo basto peso da percepção que me atingira como um martelo enfurecido, os olhos fechados em busca da escuridão onde talvez se desvanecesse o medo da minha própria finitude. Pela primeira vez em muitos meses conheci de novo a sensação de estar fora do meu lugar, de não pertencer a nada, de ser um intruso num mundo que me devia ser vedado… Contudo, perdura a indeclinável e até crescente noção de absoluta inteireza, obtida para além da fachada do trivial através de olhos que não os meus, os momentos de puro fascínio continuando a fazer-me sonhar, talvez presunçosamente, com inevitabilidades. Expressa a vontade, valer-me-ei até da eternidade que não me foi concedida, mas que desejo ainda mais profundamente…”
V.A.D. em Texto Interligado I
“E escutei a crueza das palavras, os sons ainda gravados na mente fazendo-me perceber a minha mediocridade intrínseca, levando-me a aceitar a minha própria insignificância face às incomensuráveis complexidades da existência. Sentei-me a um canto do compartimento incomodamente silencioso, os joelhos cingidos pelos braços, o tronco curvado pelo basto peso da percepção que me ferira como um martelo enfurecido, os olhos fechados em busca da escuridão onde talvez se desvanecesse o medo da minha própria finitude. Os murmúrios da rua chegavam-me vagamente aos ouvidos através da janela fechada ao frio das primeiras noites de Novembro, incapazes de silenciar o ruído que me transtornava a fluidez dos pensamentos. Encarcerei-me na nudez glacial de uma cela cinzenta, arrastado numa incongruente espiral de desânimo, desejoso que a vigília penosa desse lugar ao sono reparador. Dormirei sem sonhos, mas talvez acorde ainda capaz de sonhar com o riso despreocupado de quem tem a vida por inteiro, talvez me force a despertar da letargia lodacenta em que me afundo, talvez me eleve acima das abissais fossas da prostração… Valer-me-ei da eternidade que não me foi concedida, invocarei todas as minhas energias para não ceder à angústia da indeclinável delonga…”
“Sentia-se espalhado pelo solo pedregoso e áspero, disperso por entre a poeira esbranquiçada e inerte dos séculos esquecidos, a sua identidade esfumando-se num insignificante torvelinho, a consciência reduzindo-se a um quase nada, como que se enrolando numa esfera colapsante, a compreensibilidade esvaindo-se de si próprio, fugidia, as diagramáticas imagens laboriosamente construídas deslizando no inevitável declive entrópico de um entorpecimento vazio e cinzento. Deixara de sondar, tornara-se incapaz de entender o que ainda via, uma atroz inépcia aprisionando-o numa incomensurável aridez desarrazoada. Um derradeiro raciocínio assomou-se-lhe ao espírito, o último paroxismo suspenso num fio de inteireza: não fora em vão, aquela vida. Havia atingido um quê de plenitude, conhecera a perfeição de uns instantes perpetuados na sua própria essência, alimentara-se de fascínios indescritíveis, partilhara-se numa fusão tão absoluta quanto inesperada… E, subitamente, a inanidade das trevas separou-o da existência…”