Regozijo-me com coisas pequenas: três gatinhos num velho palheiro trouxeram-me à mente a recordação. Embora ainda não fosse verão, o dia estava quente e soalheiro, viam-se andorinhas às dezenas. Foi no pátio da velha morada, em frente à adega secular, que vi a gata, miando de dores. A minha avó tratava das flores, quando a resolveu ajudar. Pegou nela, desceu a escada. Ardendo de curiosidade, segui-as; queria ver… Deitada na palha macia, tendo-nos por companhia, a gata parecia gemer, talvez de esforço ou ansiedade. Vi a maravilha da vida nascer de dentro dela. Fiquei assim, assombrado, quieto, mudo, atordoado… A natureza é de facto bela; precisa apenas de ser entendida. Hoje, repetiu-se a magia. Três gatinhos, o mesmo local. Voltei a ser criança…! Levado por uma lembrança, revivi um momento especial. Enchi-me de uma imensa alegria…!
Imagem: Gatinho, hoje
Descia o trilho empedrado, sulcado pelas passadas de incontáveis pés, erodido pelas inumeráveis chuvas de muitos Invernos e parecia-me estar a avançar sobre uma ruína de ossos esbranquiçados pelo sol de séculos sucessivos. Na margem do ribeiro, por onde a água havia há muito deixado de correr durante todo o ano, ainda se viam as lajes onde os trapos eram esfregados, enquanto as línguas viperinas lavavam roupa suja. Dir-se-ia que o velho casebre estava há muito abandonado, as paredes desnudas mostrando as pedras irregulares cuidadosamente empilhadas numa harmoniosa confusão, escurecidas pela inacabável passagem das estações. O telhado, vergado pelo peso dos anos, fazia lembrar uma tela castanho-escura e irregular, cheia de salpicos amarelados, os líquenes e tufos de erva conquistando aquele território aéreo. Da fuga, encarvoada pela fuligem, soltavam-se rolos de fumo e no ar pairava o agradável cheiro da madeira em combustão. Antecipando as palavras que tão bem conhecia, “pode entrar, a porta ‘tá aberta!”, bati na vidraça do postigo. Um rosto, cheio de rugas e tisnado pela dura vida no campo, abriu-se num sorriso de rara espontaneidade. Entrei e dei-lhe um abraço caloroso. A fumaça, que enchia a casa e a alma do velho, começou de imediato a dissipar-se, escorrendo para a tarde fria através da porta entreaberta.
Imagem: Casebre (www.gulfislandsguide.com/photos-gabriola/images/stonehouse.jpg)
Da água, o meu olhar voltou à água. O reflexo mostrava agora um sorriso no rosto. Desaparecera, como que por artes mágicas, aquela expressão indecifrável de cansaço, que me tornava semelhante a uma estátua, mas guardei-me num silêncio de estrebuchante tranquilidade. Estava perdido num labirinto de rememorações e fazia de conta que havia retornado aos dias de antanho, quando a brincadeira era o meu mundo, edificado com a mansa simplicidade das horas despreocupadas. Tantas vezes aquele tanque havia sido um oceano imenso, onde os barquinhos, construídos de madeira e cortiça, capitaneados por lendários piratas e oficiais ao serviço de reis imaginários, se viam envolvidos em duríssimas batalhas navais. Tantas vezes havia regressado, em choro, a casa da minha avó, a roupa encharcada pela parvoíce implicante do meu irmão, que achava engraçado molhar-me… A chuva chegou sem aviso, num aguaceiro ensolarado, os pingos grossos e frios batendo com força nas pedras irregulares da parede do velho poço, à beira da ruína, depois de anos de desuso. Levantei os olhos e fui atingido bruscamente pela constatação, evidente e agradável, de que a aldeia das minhas raízes, embora jamais tivesse achado os prazeres da cidade, continuava a ser um bálsamo para a minha mente.
Imagem: Poço (produção própria)
A história migratória do Homem está ligada também ao seu estômago. Uma bactéria chamada Helicobacter Pylori, responsável por úlceras gástricas, está presente desde há muito no nosso sistema digestivo, e a sua história pode estar intimamente relacionada com a da humanidade. Graças a este micróbio, uma equipa internacional de geneticistas conseguiu datar uma das grandes etapas do Homo Sapiens. Os pesquisadores analisaram a linhagem do micro-organismo em cinquenta e um grupos étnicos repartidos pelo mundo inteiro e após terem estudado as suas diferenças genéticas, encontraram em todas estas estirpes uma origem geográfica comum: o Corno de África, no leste do continente considerado o berço da espécie humana. A expansão do tronco ancestral através de outros continentes terá começado há aproximadamente 58 milhares de anos, reflectindo a propagação da nossa espécie através de novos territórios, tal como imaginado no modelo designado "Saída de África". As rotas e cronologias desta grande diáspora não estão completamente esclarecidas, mas supoem-se que tenha ocorrido entre 50 e 70 mil anos atrás, em vagas sucessivas. Se a Helicobacter Pylori for um indicador fiável, pode ajudar a esclarecer algumas questões ainda obscuras.
Imagem: Helicobacter Pylori (www.bu.edu/bridge/archive/2004/04-02/photos/photonics.jpg)
Fontes: Science & Vie, BBC
A pressa de viver, a pressa de chegar, a pressa de fazer, a pressa de ter... A pressa, uma das características da vida actual, contagia-nos a todos. Não temos tempo nem para apreciar a paisagens da vida que passam por nós; escapam-se-nos os detalhes e se pararmos para pensar vemos que é nos detalhes mais ínfimos que reside a beleza e a maravilha de viver. Queremos tudo agora, ansiamos pela realização imediata, tanto das nossas aspirações legítimas quanto dos nossos sonhos impossíveis. Vivemos apressadamente insatisfeitos. O tempo é um fluxo inexorável e constante, feito de passado, presente e futuro. O presente é um momento que, embora fugaz, pode ser apreciado através das pequenas coisas feitas sem tempo. Não tenhamos ilusões: o futuro, essa terra incognita , esse lugar oculto, vem aí, e quando ele chega o presente torna-se passado, e os actos condensam-se em memórias, efectivas ou ilusórias... "O meu passado é tudo quanto não consegui ser", escreveu Fernando Pessoa, e será mesmo assim, se fizermos do presente um terreno árido, erodido pelos ventos catabáticos da pressa.
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