“A lua cheia despontava no horizonte, a luz fria e mortiça semeando sombras esbatidas no solo macio e de uma alvura fantasmagórica. Havíamos afastado os lobos à força de golpes de machado e corríamos em direcção à caverna, guiados pelos tumultuosos sons de luta que se erguiam no ar, gritos alarmantes rasgando a noite em sinal de desespero. O cenário era trágico. O Tatuado gritava, brandindo um tronco em brasa no engano de afastar as bestas que já ali não estavam. Havia sido atingido pelas costas pelo Cura, que jazia a uns passos, o cadáver servindo de banquete à alcateia em fúria, o arco da traição testemunhando a justiça inesperada. Era imperativo fugir dali e, em vão, esforcei-me por remover a flecha cravada profundamente na sua omoplata, de onde a vida jorrava num profuso jacto escarlate. A mão direita apresentava-se dilacerada, a lupina mordedura fazendo-lhe pender os dedos. Enfraquecido pela perda de sangue, parecia incapaz de se locomover. Reunindo as poucas forças que me restavam, carreguei-o aos tropeções montanha abaixo, ajudado pelo Vesgo. Ao fim de algumas centenas de passadas, o esgotamento assomou-se, forçando-nos a uma paragem. O corpo inerte, a ausência de pulsação e os olhos abertos mas inexpressivos revelaram-nos a verdade: Otzi, o Tatuado, havia morrido.”
V.A.D. em Otztal
Posfácio
Em 1991, o cadáver mumificado de Otzi foi encontrado nos gelos permanentes dos Alpes de Otztal, perto da fronteira da Itália com a Áustria. O seu apelido deriva do nome do vale onde a descoberta foi efectuada e o estudo detalhado deste nosso antepassado, com cerca de 5300 anos, oferece uma visão sem precedentes da vida e hábitos dos europeus do Neolítico. Embora a estória não passe de ficção, esforcei-me por respeitar os conhecimentos trazidos à luz por arqueólogos e antropólogos, com o inestimável auxílio da medicina forense. Chamei-lhe Tatuado porque no seu corpo contavam-se cinquenta e sete tatuagens.
Imagem: Otzi (www.dinosoria.com/tragedie/otzi.jpg)
“A escuridade tombou sobre o mundo. A noite, avançando inexoravelmente, trazia o frio que se me cravava na pele em rajadas de dor, os pulmões ardendo a cada inspiração, os olhos marejados de lágrimas, numa objecção surda contra o vento. Abria caminho a custo através da neve caída ao final da tarde, afundando-me até aos joelhos, a precisão de me manter em movimento, para não gelar, obrigando-me àquele esforço adicional. Coubera-me a tarefa de guardar a entrada da caverna onde pernoitávamos, até que a lua fizesse a sua aparição nos céus. Os lobos, certamente sentido o cheiro da carne fresca do veado, enchiam a atmosfera com uivos lúgubres e apavorantes e a débil fogueira que o Tatuado ateara carecia de lenha que a alimentasse e fizesse crescer. Fitava o vazio, semicerrando os olhos, quando a besta se abateu sobre mim, derrubando-me como a um estafermo. Senti o hálito quente no meu pescoço e só a rapidez da minha reacção, colocando um braço a amparar a arremetida, impediu que a morte me tivesse levado de imediato. Ferido, mas com uma enorme vontade de viver, ergui-me gritando como um louco, enquanto o machado que empunhava ganhava como que vida própria, desferindo golpes a eito, as mais das vezes atingindo o vazio até que, por fim, o crânio do animal estalou num baque seco. Vi-me cercado pelos rosnidos ameaçadores da alcateia mas, para minha alegria, ouvi o inconfundível e trovejante berro do Vesgo, que se apressava em meu auxílio…”
V.A.D. em Otztal
Imagem: Lobo (www.simplesurvival.net/wolf.jpg)
“Aproximávamo-nos do final da íngreme subida e as sombras agigantavam-se, à medida que o luzeiro descia para o horizonte, o arco da luz fechando-se sobre a terra, predizendo a negrura gélida da noite. A desolação branca era rasgada, a espaços, por penhascos enegrecidos e ameaçadores, o assobio do vento glacial a roçar na pedra contrastando com o mutismo generalizado que se havia assenhoreado da comitiva. Havíamos deixado para trás a floresta de coníferas, depois de esquartejarmos o imolado, sem que houvessem sido trocadas quaisquer palavras entre o Tatuado e o Cura, este último parecendo cada vez mais absorto em congeminações. Por fim, diante de nós, abriam-se as fauces da terra, a boca negra da Deusa, escancarada, aguardando as oferendas. Prostrámo-nos, numa genuflexão submissa, enquanto as palavras rituais eram cantadas numa cadência arrebatadora:
Oh, Deusa-Mãe sagrada
Lutámos contra neve e vento
Aqui te trazemos alimento
Que sorria, a tua face irada
No fim desta dura jornada
Rogamos-te pelo sustento
Submetemo-nos à tua vontade
Rastejando perante a grandeza
Faz do nosso fardo, leveza
Suplicamos a tua bondade
Dá-nos um gesto de caridade
Alivia-nos a dor e a tristeza
Faz do frio, temperança
Faz da neve, água pura
Suaviza esta vida dura
Faz da tempestade, bonança
Faz da desilusão, esperança
Dá-nos para os males, a cura
Por alguns instantes, senti-me em comunhão plena com a Natureza, o fervor da reza amenizando a severidade de um mundo repleto de misteriosos e intrincados caprichos. Mas, no fundo, havia já em mim a convicção de que é ao Homem que compete a escolha do caminho…”
V.A.D. em Otztal
“O sol erguia-se a meio da abóbada celeste, os seus raios incapazes de abrandecer o frio, parecendo débeis e soturnos. Das neves lá no alto, ainda saíam riachos límpidos e pouco profundos que serpenteavam em direcção ao vale mas, em breve, um frígido manto branco cobriria tudo, até o bosque de pinheiros que estávamos prestes a alcançar. O Tatuado, coxeando cada vez mais e parecendo cansado, resmoneava entre dentes, talvez o peso de muitos Invernos a fazer-se notar na falta de paciência e constante irritabilidade. O sacerdote havia-lhe exigido silêncio por diversas vezes, tantas quantas havíamos avistado um cervídeo, sem que a ordem tivesse sido acatada, e adivinhava-se uma eminente querela. Estava a primeira refeição a ser tomada, o silêncio tenso embrulhando todos num manifesto mal-estar, quando de súbito o Tatuado pega no arco, retira uma flecha da aljava e dispara na direcção do bhelgh-men, que solta um grito, aterrorizado mas indemne. “Agora podes gritar; esta flecha devia ter sido para ti, que te andas a deitar com a minha mulher, mas quis apenas consumar a nossa legação.” Seguimos, com o nosso, o olhar do Tatuado: esperneando, um magnífico veado dava os últimos bafos…”
V.A.D. em Otztal
Imagem: Veado (www.guideschool.com/res/images/Whitetail10.jpg)
“O Râjan estava sentado, as costas direitas, a boca cerrada e o olhar fixo num ponto não muito distante. Eu, o Vesgo e o Tatuado prostrámo-nos diante dele, a nossa vista pousada nos tufos de erva, a ansiedade tomando conta de cada um de nós. Calmo e seguro, o rei estendeu o braço e tocou-nos nos ombros, em sinal de outorgamento. De imediato, o bhelgh-men irrompeu numa litania repleta de gestos herméticos, enquanto nos erguíamos vagarosamente. Não é possível descrever a ventura que sentia: havia sido aceite no restrito grupo de homens cuja função era garantir por todos os meios a defesa da grei contra o caos. Era-nos confiada a maior das tarefas, o apaziguamento da sanha da Deusa-Mãe, através dos rituais procedentes da noite dos tempos. O falhanço levaria à desgraça, o sucesso representava a glória eterna. Havia começado o Yule; o carneiro cozido com as melhores verduras, o pão ázimo e a cerveja em abundância haveriam de encher os estômagos. As festividades na Casa Comunitária – tambores e flautas marcando o ritmo das danças – prolongar-se-iam durante todo o dia e toda a noite, uma torrente de ledice no monótono gotejar da existência. Para os escolhidos, carne de veado, bolos de farinha de trigo, uma dura caminhada e a impreterível necessidade de sucesso na caçada…”
V.A.D. em Otztal
Imagem: Casa Comunitária (www.islandlife.org/images/Lesvardes1.jpg)
“A noite do meu desassossego esquivava-se, com dificuldade, por entre um sono inquieto, abastecido de pesadelos, a imputação de tão distinta empreitada impedindo o repouso e inundando a pele de abundantes e frios suores. Já noite adentro aconcheguei-me a ela, o corpo quente e a tez macia dissolvendo o nervosismo que me perturbava, fazendo crescer o desejo que se tornou acto e me exauriu de receios, numa extasiante aquietação. O despertar foi sobressaltado e a ablução feita à pressa. Vesti as calças de couro e o gibão de lã, tecido especialmente para aquela ocasião distinta e calcei os largos sapatos de sola. Os dois potes de barro, um contendo leite de cabra e o outro cevada, haviam já sido tapados com pele de urso curtida, atada com corda de esparto, e estavam já na Casa Comunitária, aguardando o cervo que havíamos de atingir com as flechas benzidas pelo bhelgh-men. Sobre os ombros, a capa de grama apanhada no pântano; na cabeça, o gorro feito de pele de urso castanho. Respirando fundo, conferi as armas: um machado de cobre, um arco de teixo e a inseparável faca de sílex. A despeito da arrefecida tempérie, a manhã anunciava-se límpida e radiosa, augurando boa sorte na caça. Antes de enfrentar o destino, olhei para ela, ainda adormecida, e saí…”
V.A.D. em Otztal
Imagem: Machado de Cobre (www.archaeometallurgie.de/bilder/bilderk/hauslabk.jpg)
“Os dias tornaram-se noutros dias, as noites aumentaram de tamanho e o tempo em que o fogo brilhava no céu encolheu como uma peça de vestuário, urdida de lanugem de merino, sujeita à água. O manto castanho e dourado de um Outono serôdio desvanecia-se, fumarento, sobre a Terra, dando lugar à friagem branca das geadas e às alvoradas cinzentas e opacas de neblina. Três grupos de dez marcas, feitas num osso de bisonte com a afiada faca de sílex, serviam-me para a contagem do tempo. Em breve, mais um sinal seria gravado, mais um solstício de Inverno em rápido achegamento, anunciando a austeridade das próximas luas, fazendo conjecturar a morte de alguns anciãos, incapazes de resistir às chuvas geladas, espirros da Deusa-Mãe, agastada, trazendo o infortúnio ao clã. A roda do ano não podia terminar sem que a essa divindade tríplice fossem feitas oferendas: leite para a virgem, carne de veado para a mãe, cereais para a anciã. O conselho tribal havia-se reunido, aos primeiros raios de luz, na clareira entre as habitações, redondas e feitas de argila e madeira, em frente à Casa Comunitária, e decidira a quem pertenceria a honra de acompanhar o sacerdote, na subida à grande montanha dos gelos eternos…”
V.A.D. em Otztal
Imagem: Alpes de Otztal (www.alovelyworld.com/webautri/gimage/autri54.jpg)
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