“Penosamente, peguei nos pedaços desfeitos da minha congruência e juntei-os com extremo cuidado. A espuma e a lâmina de barbear encarregaram-se de sonegar as provas; a água, negra de sonhos lúcidos, sumiu-se pelo ralo abaixo. Rodopiando, levou consigo parte do meu cepticismo. Nesse dia, quis dormir até à exaustão.
Assisti ao gotejar das águas na clepsidra do tempo, as horas passando por mim como luzes vertiginosas, os anos sucedendo-se bonançosos, percebidos com a cadência própria de quem já viveu metade da vida. Sabia, de forma pertinente, que aquele episódio não passara de uma ilusão, que nada daquilo que sentira e experimentara havia sido real. E, no entanto, vívida e incisiva como um gume afiado, a esquizóide e obsessiva impressão de aquilo tinha sido mais do que uma simples manifestação de uma raridade neurofisiológica, teimava em atormentar-me. Tinha sido oneironauta por uma noite: a hiper-realidade, estranha e enganosa, apossara-se de mim, arrastando-me por lugares horríveis e fazendo-me refém de mim mesmo. Ah…! Nunca mais levei os dedos à nuca!”
V.A.D. em Os Outros.
Imagem: Sonho Lúcido (http://sprott.physics.wisc.edu/fractals/collect/2005/Lucid_Dream.jpg)
“Acordei com o som irritante do velho despertador. Mesmo que viva mais cem anos, nunca me irei habituar àquele ruído esganiçado e intermitente, que me entra pelos ouvidos adentro, qual trombeta em desatino tocada por um músico alienado. Um agonizante cansaço, que me moía os ossos e oprimia as têmporas, não impediu que me levantasse de rompante: sabia ser a única forma de não voltar a cair num sono esvaziado e estupidificante. Ansiava por um duche que me arrancasse, da pele e da mente, a sujidade das lunáticas horas daquela noite cataléptica. Depois de satisfeita uma premente necessidade fisiológica, abri a torneira e, enquanto esperava que a água se fizesse quente, olhei-me no espelho. O choque foi avassaladoramente brutal e indescritível na sequela. A minha face, escanhoada escrupulosamente havia menos de um dia, apresentava-se coberta por uma longa barba cerrada. Os olhos, vermelhos de minúsculos mas incontáveis derrames, denunciavam uma fadiga impossível. Levei os dedos à nuca, e o tacto disse-me que lá estava a cicatriz dos meus medos, ainda por sarar. E o meu juízo, desfazendo-se numa geleia grumosa e peganhenta, desagregou-se do meu ser e escorreu por mim abaixo…”
V.A.D. em Os Outros.
Imagem: A Perda do Juízo (http://baltgames.lv/v2/usergalleries/46135.jpg)
“Não consegui sequer completar o pensamento. Pois que o tempo efectivamente ludibriou-me, esquivando-se desabridamente, deixando-me inane de raciocínios e saciado de sensações. Tudo o que havia já experimentado, dor e êxtase, alegria e pesar, ódio e amor, raiva e tranquilidade, tudo se afunilou numa imensa torrente, barulhenta e embriagante. Toda a luz, toda a cegueira, todas as loucas delícias e todas as infaustas desilusões estavam condensadas naquele infernal instante sintético. A totalidade do que já havia conhecido parecia esfaquear a minha sanidade, a seiva da lucidez esvaindo-se a cada golpe… Parecia-me que balançava entre a vida e a morte, sem perceber a eternidade. Séculos de séculos, vidas depois, tive de novo consciência da minha natureza humana. Reconheci instantaneamente a semi-obscuridade tranquila do meu quarto e aquietei-me com um compassado e ténue som de respiração. Ainda com o coração a bater aceleradamente, virei-me para procurar o aconchego do corpo dela encostado ao meu. Abracei-a e adormeci, enquanto me tentava persuadir de que tudo aquilo não passara de um mero pesadelo. Teria sido apenas isso…?”
V.A.D. em Os Outros.
Imagem: Vórtice (www.robotpegasys.com/alienswfs/abcfiles/vortex.jpg)
“Soergui-me, um cotovelo apoiado no almadraque que de imediato se adaptou à pressão exercida. Um guincho inquietante, um uivo agudo pejado de surpresa meteu-se-me pelos ouvidos adentro, derrubando-me como se uma mão invisível me tivesse empurrado. Soube que qualquer coisa não estava certa; pareceu-me haver um novo odor na atmosfera, um fedor aflitivo a asco e repulsa, que me nauseou a ponto de vomitar o vácuo das minhas entranhas. E senti a dor, subtil mas incómoda. Não tive necessidade de levar a mão à nuca para saber que, enquanto inconsciente, aqueles cirurgiões diabólicos tinham estado a trabalhar, introduzindo condutores em centros do meu cérebro, micrometricamente localizados. Nessa massa de tecido hipertrofiado, com menos de quilo e meio de peso, feixes de nervos e tecido especializado dominam a disposição e as emoções, assim como o pensamento consciente e as actividades motoras. E então um medo estarrecido apoderou-se de mim, tolhendo-me irrevogavelmente. Apercebi-me que não era mais que um títere, estranhamente suspenso por fios condutores, indiscutivelmente manietado por impulsos eléctricos meticulosamente aplicados…”
V.A.D. em Os Outros.
“Um tremor incontrolável tomou conta de todos os músculos do meu corpo, como se o tivessem mergulhado nas águas geladas de um lago boreal. Uma luz azulada e difusa parecia amplificar a fantasmagoria atordoante de um cenário para o qual nada me podia ter preparado. Debruçada sobre mim, a vaga silhueta de um ser definitivamente alienígena focava nos meus os seus olhos, negros como as profundezas das fossas abissais, penetrantes e interrogativos como projécteis disparados pela arma da curiosidade. Através da visão periférica, conseguia discernir outros vultos, esguios e estáticos, rodeando a tarimba onde jazia indefeso. Para lá deles, naquilo que julgava serem paredes abobadadas, luzes suaves piscavam num frenesim multicolor de tinta salpicada. Um zumbido grave e quase imperceptível estremecia-me por dentro, contribuindo para aquela sensação de pânico, insidiosa como uma erva daninha, que sentia estar a formar-se dentro de minha mente. Julguei, por momentos, estar no meio de algum pesadelo aterrador. Era premente reagir de alguma forma…”
V.A.D. em Os Outros.
Imagem: Olhos Alienígenas (http://ufoundercover.homestead.com/Alien_Eyes_Green.jpg)
“Acordei em sobressalto, no meio de uma sufocante desordem de pensamentos em tropelia, a consciência a ganhar forma rápida e titubeantemente, todavia ainda isolada do mundo por uma cegueira sensorial que abalava a minha placidez. Sentia-me protagonista de um filme sem conteúdo, projectado inexequivelmente depressa sobre uma tela defeituosa e ondulante. Um fosso de temores separava-me da vontade de abrir os olhos, o alarmante receio de que o corpo não obedecesse às ordens do cérebro impedia que me movesse. Pressentia a penumbra de um lugar frio e cinzento e um desconforme murmúrio de movimentos quase inaudíveis fazia-me crer que alguém se encontrava à espreita do meu despertar. Compreendi que devia virar os meus esforços para a necessidade de recordar o que me colocara naquela estranha situação, em que receava nem sequer ter a habilidade de me reconhecer. Percebi-me deitado de costas, nu sobre um catre duro mas de textura aveludada, os braços alinhados ao lado do corpo e as pernas estendidas. Cautelosamente, entreabri os olhos e sufoquei o grito que de imediato se formou na minha garganta…”
V.A.D. em Os Outros.
Imagem: Cegueira Sensorial (original em http://wado.podomatic.com/2007-04-02T11_03_15-07_00.jpg)
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