“– A hora é de desassossego; está confirmada a inevitabilidade do êxodo (…)”
“Ecos de épocas distantes ressoavam no meu córtex auditivo à medida que as imagens tridimensionais desfilavam mudas em frente aos meus olhos esbugalhados por um assombro tão grande quanto o próprio Universo. Testemunhava os hologramas milenares, relíquias de um glorioso passado alienígena, insondado até então e, contudo, intuído desde sempre. Durante minutos ou horas, já nem sei, as paredes de pedra transformaram-se num horizonte ocre, o tecto numa rarefeita atmosfera de tinta inenarrável, o luzeiro adquirindo a deslumbrante incandescência de uma estrela uma vez e meia mais distante. Vi as paredes alcantiladas do canyon longo de milhares de quilómetros, senti no meu imo a imponência da maior elevação do sistema solar, a minha mente de criança embasbacando-se perante a magnificência desértica dos continentes, o espanto avassalando-me ante a visão de uma cidade esplendorosa e intacta, as tempestades de poeira não havendo ainda exercido a acção erosiva dos séculos posteriores. E a face, aquela face… A mesma face que a imprensa colocaria em destaque poucos dias mais tarde e que iria certamente atrair atenções sobre um planeta agora morto…”
“E o governante supremo dirigiu-se-me, a inquietude que lhe fervilhava nas artérias sendo notavelmente disfarçada pela brandura da voz (…)”
“Devo começar por afirmar que não é meu hábito fazer revelações acerca de assuntos tabu. Contudo, faço-o agora na esperança de trazer até vós o fascínio de uma realidade que vos tem sido propositadamente sonegada. Recuo àquela tarde quente de fins de Julho, quando se estabeleceu abruptamente uma sorte de pânico silencioso na casa onde havia nascido oito anos antes. Lembro-me, com uma extraordinária clareza, da preocupação estampada no rosto do meu pai, a tensão convertida em rugas profundas, os cabelos eriçados parecendo ainda mais alvos à fulgurante luz do sol, já para lá do zénite mas ainda pendurado bem alto no azul de um céu que sempre sentira não ser o meu. Recordo-me da gravidade das palavras proferidas pelo meu avô materno, a ansiedade transparecendo no tom da convocatória, e está bem presente na minha memória a prontidão com que foi seguido até à cave centenária, a entrada oculta sobre a pesada carpete da salinha que lhe servia de escritório, o alçapão escondendo um mundo ao qual eu e o meu irmão nunca havíamos acedido e do qual nunca tínhamos tido a mais remota suspeita…”
“Agora, as inenarráveis imagens que se vinham formando no córtex visual apresentam-se-me transmutadas numa realidade tangível, os sentidos despertos inundando a minha mente de impressões avassaladoras, a delonga havendo servido para tornar a flama latente numa deflagração incontidamente transbordante. Agora, os mais ínfimos recantos da minha mente são preenchidos por sensações de uma beleza e profundidade inimaginadas, um rio caudaloso transportando-me na correnteza dos estímulos até à foz de todos os êxtases… Agora, deslizo tranquila mas avidamente para um sonho de penumbras, as suaves luzinhas engastadas no tecto de madeira fitando-me num desafio atrevido, a música tocando baixinho num sensual e provocante murmúrio, a antecipação provocando o saboroso frémito que me percorre todo o corpo em intensos afluxos sanguíneos, numa espécie de ânsia roubada ao próprio desejo. Agora, descubro os sabores exóticos de especiarias, numa sinestesia de afagos, descortino a silhueta da incontida paixão nas feromonas que me dominam a existência, diluo-me na cálida e tempestuosa harmonia de uma entrega absoluta…”
“Arranco violentamente as conexões neurais que me aliam à I.A., os eléctrodos ligados ao transceptor de arsieneto de gálio implantado na nuca ficando irremediavelmente danificados, uma definitiva cessação das esparsas e inconsequentes comunicações parecendo-me a melhor forma de readquirir o domínio completo de mim próprio e da cápsula que me ampara. Revejo mentalmente o plano que decorre das conclusões matematicamente encontradas, reassumo o lugar de piloto que me pertence por direito e traço o rumo no ecrã táctil. Incontáveis qubits flúem do computador de navegação para cada um dos processadores quânticos associados aos inúmeros propulsores direccionais. Lenta mas inexoravelmente, o veículo alinha-se no sentido de rotação da ergosfera, o motor de antimatéria levado nessa altura à potência máxima em escassos vinte e três nanossegundos, um impulso milhares de vezes superior à massa da nave sendo desenvolvido quase instantaneamente. Parece paradoxal, eu sei, mas neste preciso momento atravesso a linha temporal no sentido antagónico ao percorrido por incontáveis googois de seres viventes…”
“Durante aqueles revoltos dias subsequentes, senti inúmeras vezes o perfume acidulado da velha Dama da Gadanha, aquela que anda de mão dada com o Tempo desde os primórdios da vida. Quis inalá-lo, quis tornar-me poalha inerte, quis regressar à quietude desapossada da não existência; talvez assim as cordas de mim mesmo se reintegrassem serenamente na grande sinfonia universal… Depois instalou-se um entorpecimento resignado, pútrido vómito daquilo que fui (e que hei-de voltar a ser, não sei quando nem como), a alma peganhenta escorrendo, viscosa, para uma poça de letargo. E sobreveio uma pirexia avassaladora, o corpo cedendo por fim ao cansaço dos longos dias de uma vigília inquieta, o sono decrescentemente delirante aliando-se à mente para que a lucidez fosse recuperada. Busquei o equilíbrio extraviado por entre as memórias pretéritas e as perspectivas futuras, tentando abstrair-me do presente através de uma intensa pesquisa na vasta base de dados da cápsula, regressei aos cálculos num esforço solitário, desistindo de conferenciar com a I.A. cuja conduta se assemelha a uma obstinada e contraditória teimosia. Por fim, num lampejo fortuito, é-me desvelada a forma de escapar ao aprisionamento neste lugar ermo e ultrajante, numa fórmula tão inusitadamente simples quanto fascinantemente eficaz…”
“O calendário diz-me que treze dias terrestres estão transcorridos e, contudo, a realidade apresenta-se obstinadamente discordante. O Tempo imobilizou-se num emaranhado de sentimentos antinómicos, o humor alternando entre a resignação apática e uma irascibilidade quase violenta, os raros momentos de serenidade sendo aproveitados em cômputos cujos resultados me parecem cada vez mais inverosímeis. A insónia tem-me atormentado sobremaneira, a mente ressentida da privação do repouso parecendo recusar-me a profundidade de reflexão tão necessária à superação da crise em que me vejo envolvido. Erro de trajectória ou insólita deformação do espaço-tempo, defeito nos sistemas de orientação ou incúria da I.A. na efectivação das imprescindíveis correcções para conservar a nave no plano de voo antecipadamente estabelecido? Talvez tenha sido uma conjugação de factores adversos e de circunstâncias invulgares a trair as expectativas, provavelmente elas próprias excessivas, a ousadia de acreditar em futuros risonhos fazendo-se pagar bem cara com decepcionantes reveses… E agora, um indeclinável conflito intestino agiganta-se por entre os meatos quase vegetativos da entidade em que me tenho vindo a tornar, ameaçando rasgar o que resta da inteireza…”
“Tremem-me as mãos, no meu semblante reconhecem-se esgares de um pânico que me esforço por controlar, o nó na garganta teimando em se não desfazer apesar de perceber agora o exótico lugar onde me vejo aprisionado, a dor instalada atrás dos globos oculares aturdindo-me, tolhendo-me numa apatia pestilenta que preciso de sacudir. Purgatório dantesco ou limbo kafkiano, este espaço em contínua revolução e desprovido de tempo desafia a loucura e corrói a sanidade, a singularidade para lá do horizonte de eventos parecendo rir-se sarcasticamente da imaturidade de quem queria a eternidade e agora não sabe o que lhe fazer. A própria I.A. demitiu-se da congruência que lhe era característica, num revérbero da consciência de que sei não ser despojada. Acha-se inábil para inverter a situação, diz-se incapaz de gerir competentemente as exigências a que se diz submetida, as contradições balbuciadas incrementando-me as dúvidas acerca da minha viabilidade enquanto ser equilibrado. Afinal, não reside nas minhas mãos o controlo efectivo do meu destino: na ergosfera o espaço-tempo é arrastado pelo campo gravitacional do buraco negro rotativo, a distorção assumindo contornos difíceis de analisar por um desprezível mortal…”
“Os meus olhos vagueiam pelos campos cósmicos desprovidos de estrelas, um frio glacial enregelando-me o sangue, um pavor desmesurado dementando-me o raciocínio e incapacitando-me de assimilar a magnitude do que me havia sucedido. Demoro-me pelas amplidões sombrias de um nada aparentemente dominado pela mais absoluta entropia, exilado do meu próprio Universo por forças muito para além da compreensão, perdido num referencial descaracterizado e isotrópico. Das profundezas da mente vai emergindo a indubitável e tenebrosa sensação de que não há por onde fugir, a cápsula que me sustenta mal suportando o esforço de manter operativos os sistemas, os mostradores piscando em alarmantes vermelhos e amarelos e a escuridão completa do exterior contribuindo para a absoluta desorientação em que me vou naufragando. Respiro fundo, perseguindo a serenidade que se me afigura esquiva, faço por ordenar os pensamentos e peço à I.A. que me elucide. Revela-se parca em palavras, o profuso fluxo de dados provenientes dos sensores ocupando-a talvez em demasia para valorizar a pertinência das minhas questões…”
“E vi o brilho despido do espaço, as imagens ainda gravadas na retina fazendo-me perceber a mortalidade intrínseca, levando-me a aceitar a minha própria exiguidade face às incomensuráveis vastidões daquele prodígio. Sentei-me a um canto do compartimento gratificantemente finito, os joelhos envolvidos pelos braços, o tronco vergado pelo basto peso da percepção que me atingira como um martelo enfurecido, os olhos fechados em busca da escuridão onde talvez se desvanecesse o medo da minha própria finitude. Pela primeira vez em muitos meses conheci de novo a sensação de estar fora do meu lugar, de não pertencer a nada, de ser um intruso num mundo que me devia ser vedado… Contudo, perdura a indeclinável e até crescente noção de absoluta inteireza, obtida para além da fachada do trivial através de olhos que não os meus, os momentos de puro fascínio continuando a fazer-me sonhar, talvez presunçosamente, com inevitabilidades. Expressa a vontade, valer-me-ei até da eternidade que não me foi concedida, mas que desejo ainda mais profundamente…”
V.A.D. em Texto Interligado I
“E escutei a crueza das palavras, os sons ainda gravados na mente fazendo-me perceber a minha mediocridade intrínseca, levando-me a aceitar a minha própria insignificância face às incomensuráveis complexidades da existência. Sentei-me a um canto do compartimento incomodamente silencioso, os joelhos cingidos pelos braços, o tronco curvado pelo basto peso da percepção que me ferira como um martelo enfurecido, os olhos fechados em busca da escuridão onde talvez se desvanecesse o medo da minha própria finitude. Os murmúrios da rua chegavam-me vagamente aos ouvidos através da janela fechada ao frio das primeiras noites de Novembro, incapazes de silenciar o ruído que me transtornava a fluidez dos pensamentos. Encarcerei-me na nudez glacial de uma cela cinzenta, arrastado numa incongruente espiral de desânimo, desejoso que a vigília penosa desse lugar ao sono reparador. Dormirei sem sonhos, mas talvez acorde ainda capaz de sonhar com o riso despreocupado de quem tem a vida por inteiro, talvez me force a despertar da letargia lodacenta em que me afundo, talvez me eleve acima das abissais fossas da prostração… Valer-me-ei da eternidade que não me foi concedida, invocarei todas as minhas energias para não ceder à angústia da indeclinável delonga…”
“Sentia-se espalhado pelo solo pedregoso e áspero, disperso por entre a poeira esbranquiçada e inerte dos séculos esquecidos, a sua identidade esfumando-se num insignificante torvelinho, a consciência reduzindo-se a um quase nada, como que se enrolando numa esfera colapsante, a compreensibilidade esvaindo-se de si próprio, fugidia, as diagramáticas imagens laboriosamente construídas deslizando no inevitável declive entrópico de um entorpecimento vazio e cinzento. Deixara de sondar, tornara-se incapaz de entender o que ainda via, uma atroz inépcia aprisionando-o numa incomensurável aridez desarrazoada. Um derradeiro raciocínio assomou-se-lhe ao espírito, o último paroxismo suspenso num fio de inteireza: não fora em vão, aquela vida. Havia atingido um quê de plenitude, conhecera a perfeição de uns instantes perpetuados na sua própria essência, alimentara-se de fascínios indescritíveis, partilhara-se numa fusão tão absoluta quanto inesperada… E, subitamente, a inanidade das trevas separou-o da existência…”