“Brinco com o anel rodando-o no anelar e adivinhando as inscrições que o breu não me deixa vislumbrar. O alinhamento dos planetas havia-me levado a Ta-netjeru, a “Terra dos Deuses”, fazendo-me embrenhar, a austral, nas águas do Nilo, quase até chegar a margens núbias. Num acto de requintada ironia, os astros haviam eleito uma noite em que a abóbada celeste se velara com um manto de densa bruma, passando num passo cuidadoso pelo Nectanebo, a sul do Templo de Ísis, e pelos dois enormes pórticos em “V” na semi-obscuridade. A primeira das seis cascatas lembrava a sua proximidade, com um ruído constante que criava a sensação de, mesmo aqui na ilha de Filae, as minúsculas gotinhas de humidade se fazerem sentir na pele, gelando-me. Dois pesados archotes assinalavam o primeiro pilone, iluminando em conjunto o imenso espelho de água que acrescentava no seu reflexo um pouco de magia à desértica fachada do templo.
Abeirei-me da sua superfície, mirando-me. Uma vida havia passado – havíamos percorrido o mundo, mostrando nos mais restritos círculos o engenho que havia ficado sem outro nome senão esse, envolvendo-nos em demandas científicas, conhecendo gentes em cada porto; tínhamos sofrido um pouco, sorrido um tanto e, sobretudo, havíamo-nos amado demais; fôramos companheiros, cúmplices e amantes até à sua morte – mas a minha face mal tinha sido tocada pelo tempo. Aparentemente partia como tinha conhecido Hiparco naquela noite em Alexandria, levando o mesmo anel no dedo, o astrolábio, aperfeiçoado, dentro da bolsa e o cabelo claro preso num gancho de âmbar e prata. Não havia sequer trazido o mecanismo, tinha-o doado aos sábios de Rhodes. Contudo, levava no olhar um novo sentimento que não deixaria jamais. Um familiar clarão iluminou a noite. Encaminhei-me vagarosamente para lá.
Teria saudades.”
Sophia
Pouco antes da Páscoa do ano de 1900, uma tempestade desviou de sua rota um barco grego de pescadores de esponjas, fazendo-o chegar à pequena ilha de Antiquitera, a meio caminho entre o Peloponeso e Creta. Quando mergulharam a sessenta e um metros de profundidade, encontraram os restos de um navio romano que havia naufragado por volta do ano
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (IV) (http://www.newyorker.com/images/2007/05/14/p465/070514_antikythera01_p465.jpg )
“Who dares to love forever?
When love must die
But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips (…)
And we can love forever
Forever is our today (…)
Who waits forever anyway?”
Obrigado, Sophia!
“Calo-me. Fica só o som do pausado bater do coração e o enérgico palrar das aves que anuncia o entardecer. O sol já ia baixo, a oeste, iluminando agora o banco. Ambos havíamos viajado por horas pelo meu passado – mais longe do que Hiparco alguma vez teria sonhado ir, mais longe do que eu pensaria vir a levar alguém. Contara-lhe que no Ragnarok me haviam afastado do meu povo, expulso duma terra que habitava há tanto que poderiam chamar sua, que havia sido a guardiã do saber de gerações, tão almejado pelos invasores, e que me haviam deixado somente um anel com inscrições sobre um alinhamento planetário, uma pista para um resgate que perdera importância à medida que a construção do mecanismo que o permitiria singrava. Ele dá-me um beijo terno e devolve-me o Astrolábio, pedindo num sussurro novamente quente que o ensine a olhar as estrelas.
Findara a tarefa que nos juntara, mas nascera algo mais…”
Sophia
“O cronógrafo, em contagem regressiva, registava quarenta e oito unidades de tempo até à abertura do portal, o buraco de verme ainda impenetrável apresentando-se sinalizado por dois imensos radiofaróis, a energia sendo extraída de Musphelheim que brilhava, inexaurível e amarela, seis minutos-luz para lá do gigantesco planeta gasoso, fonte inesgotável de lendas, terra dos gigantes que na antiguidade haviam atemorizado as criancinhas pelas histórias contadas nas noites escuras. Antes de se concentrar na miríade de ponteiros e luzes, pejando o painel do carro espacial, Wotan lançou um derradeiro olhar ao seu mundo natal, o negrume do espaço descontinuado pelo azul da enorme lua a que chamavam de Asgard, berço e morada dos seus. De súbito, a viagem ocorreu, o alinhamento planetário num sistema distante somando a gravitação até que o atalho se desfechasse, o tempo e o espaço desfazendo-se numa singularidade, os parsecs diluindo-se num grânulo sem grandeza aparente, a Terra aparecendo diante de si, tão azul e bela quanto sua por acolhimento.
A noite descera, havia pouco. A Lua, cheia de fulgor, emitia uma claridade fantasmagórica sobre os montes e os vales onde as sombras se escondiam, a povoação outrora resplendorosa aninhando-se no sopé da montanha onde a fortaleza se arruinara. Segurava a sua lança como um bordão, a face sombreada pelo chapéu de aba larga que lhe não escondia o cabelo cinzento nem o brilho do olhar. Abriu a porta num rompante. Os rostos denotaram primeiro surpresa, depois uma profunda reverência. A sua voz soou, cavada e penetrante, quando quis saber se Freyja se encontrava ali, na que fora a casa de Vanir. Disseram-lhe que não; ofereceram-lhe guarida… Wotan, o Viandante, também chamado de Odin, estava de novo entre os mortais e assim permaneceu por mais duas noites e dois dias, esperando em vão por aquela que talvez tivesse finalmente encontrado Odur… Teve de partir, o alinhamento prestes a desfazer-se contando-lhe os minutos. Um mensageiro chegou, o cavalo esgotado pela urgência, um papiro dizendo-lhe que Freyja estaria no Egipto, quando uma nova conjunção se concretizasse…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Jardim
“Shows me colours when there's none to see
Gives me hope when I can't believe
That for the first time
I feel love”
“Por um breve segundo, ecoaram as memórias dum plano antigo que antevira a separação. Ele afastara-se, após haver instalado o par de ponteiros da face inferior e o último trio de engrenagens de triangulares dentes de bronze. Agora, uma gota abatia-se sobre a superfície lisa da água, preenchendo a uma cadência de insuperável precisão o silêncio nervoso que, qual ave agoirenta, pairava sobre nós desde o despertar, já tarde adentro. A cada impacto espalhavam-se novas gotículas pelo recipiente de cobre da clepsidra sobre a qual Hiparco se debruçava, ausente, e a cada instante de intervalo eu sofria com a inquietude dos seus gestos, conservando ainda os dedos sobre o mostrador delineado a pigmento negro no cedro, onde os inertes ponteiros em breve principiariam a sua trajectória de circular perfeição. Simulara, no mecanismo, a posição observada, duas noites atrás, dos planetas cuja trajectória através do firmamento iria ser antecipada, a chave sextavada encaixando na perfeição no veio principal, cuidadosamente facetado. Rodei-a, perdendo a conta das voltas, até os ponteiros encontrarem o alinhamento. O calendário marcava trezentos e vinte e quatro. Esses eram os dias que me separavam do possível fim do exílio.
Outra gota condensou num momento ímpar aquele ápice em que tomei a decisão. Sem esperar pela seguinte, interrompi o trautear na madeira e levei-o para o jardim de estilo grego. Aí, o timbre da minha voz dispersava-se em explicações sobre a sua intrincada prenda, os seus olhos acompanhando cada oscilação do disco de oito polegadas de diâmetro, a mudez sendo mantida nos seus lábios. Eu adverti-o que só poderia servir-se de parte do delicado instrumento quando o sol desse lugar ao firmamento nocturno e pedi-lhe para suspender o astrolábio pelo anel de metal, na face oposta girei a alidade oca até que um único feixe de luz se projectasse na palma aberta da minha mão e tentei precisar o grau que era indicado na escala. Ele deixou descair o braço ao longo do corpo e desfez o alinhamento do aparelho, fitou-me com uma frieza contundente e disse-me que não suportaria mais os meus segredos, ocultações e enganos. Talvez fosse a hora marcada para a sua partida; contudo, ele mantinha-me presa pelo olhar que veementemente suplicava que não a permitisse. Segurei-lhe os pulsos e sentámo-nos num banco sob a sombra duma árvore, respirei fundo e encostámo-nos para deixar fluir toda a minha história, gota a gota…”
Sophia
V.A.D. E Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (III) (http://eumesmo.nireblog.com/blogs/eumesmo/files/calcuastro2.jpg)
“Talk to me softly
There's something in your eyes
Don't hang your head in sorrow
(…)
Give me a whisper and give me a sigh”
“A agitação da noite trazia-me uma estranha sensação de esgotamento, a comemoração decorrendo faustosa, músicos e dançarinas entretendo a alta sociedade rhodiana que comparecera em peso, o banquete de peixes variados, saladas, queijos de cabra e carnes de cordeiro sendo regado a esmo com os encorpados vinhos brancos nascidos dos vinhedos que cobriam, vastos, as encostas de Attaviros, os finos licores de todas as proveniências inundando de risos soltos e conversas fúteis a atmosfera cálida. Freyja revelava-se em todo o seu esplendor como anfitriã, cavaqueando com os convivas, orientando os servos, providenciando uma festa como poucas haviam sido vistas ao longo da rica história daquela virtuosa e antiga cidade. E, contudo, pela minha mente corria célere o desejo de me furtar à companhia dos que me homenageavam com a sua presença, ansiava escamotear as questões teimosamente assestadas, as minhas pesquisas e trabalhos sendo o mote preferido de todos os que se me dirigiam. Queria, acima de tudo, poder analisar o assombroso objecto que apenas pudera entrever sucintamente, um disco de bronze graduado no bordo, um anel de suspensão para a verticalidade e uma mediclina formando o admirável mecanismo contido na caixa onde, artisticamente, uma goiva reproduzira fabulosos seres marinhos. O valioso presente oferecido pela mulher a quem me encontrava ligado por laços inusitadamente tenazes serviria, segundo me havia dito, para a medição a altura dos astros acima do horizonte, podendo ajudar na navegação marítima ou resolver problemas geométricos. Quantos conhecimentos se esconderiam dentro daquele abscôndito mundo de mistério que parecia ser a vida dela…?
Veio, sentou-se encostada a mim, fez-me esquecer os tormentos e dúvidas que me vinham assolando, o festim findo com a saída do último convidado dando lugar à celebração de uma união espiritual mediante uma entrega física que atravessou a madrugada para cessar apenas aos primeiros raios do novo dia. Dormimos, extenuados, a manhã passando por nós sem que disso déssemos conta, a canícula despertando-nos já tarde adentro. Uma ideia, provavelmente resultante de algum sonho evanescente, instilara-se, fixa na minha cabeça. Hoje, Freyja teria de se me mostrar por inteiro, ou deixá-la-ia... Se fosse capaz…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Astrolábio (http://plato.if.usp.br/1-2003/fmt0405d/medievo/islam/astrolabio2.jpg)
“Tenho um astrolábio
Que me deram beduínos
P’ra medir no firmamento
Os teus olhos astralinos…”
"O Sol ia-se recolhendo para lá do remoto horizonte, onde os marinheiros lhe confiavam a sua vital orientação, a inclinação dos últimos raios do dia acentuando-se para lá do corrupio do porto, entrando num feixe que se estreitava pela janela ocidental da espaçosa sala, desenhando anárquicos padrões nos grânulos cristalinos do mármore do pavimento, pintando em tons de laranja o fino perfil das partículas em suspensão no ar e reflectindo-se nas novas curvas e contracurvas que iam surgindo pela minha mão, na estreita superfície dum pequeno ponteiro. Por uma tarefa que, como solitário propósito, tinha o adiamento duma inevitável conclusão que o meu íntimo repudiava, os movimentos delicados da aguçada ponta em bisel do elegante buril deixavam adivinhar na prata a silhueta duma lua nos braços de Selene, como já se delineara o esboço dum sol seguro por Hélio sobre a cabeça e como se iria traçar outra elaborada figura na platina do terceiro ponteiro do mostrador principal do engenho. A falta de luminosidade fez-me pousar o trabalho. Levantei-me e dirigi-me a um estreito armário de madeira nubiana que abri com a ajuda de uma minúscula chave de ferro trazida dos orientes e sempre mantida escondida nas abas do manto. Forrada por papiros e algumas tabuinhas, destacava-se ao lusco-fusco uma caixa de madeira, nos veios da qual se imortalizara um bélico bailado de monstros marinhos, e uma pequena bolsa linho tingido a carmesim. Hesitando por um instante em que ia escurecendo, deixei cair para a palma aberta, num único gesto, o anel guardado no tecido. Distraí-me com peso do gélido metal, fazendo-o girar por entre os dedos, um antigo hábito regressando, reflexivo. Tremi com fardo das revelações inscritas, a imensa carga que me fez trocar o seu familiar toque pelo humano.
Ao som abafado das solas dum par de sandálias a descer pelos degraus da imponente escadaria que conduzia ao quarto, peguei na caixa, larguei o anel que ressoou acusadoramente na prateleira de cedro e fechei bruscamente as portadas cobertas de desenhos egípcios. O denso cheiro de cera e resina duma vela que transportava denunciou a chegada de Hiparco. Desatei a fita de cetim negro com que prendia o cabelo para trabalhar e virei-me, segurando nos braços a prenda para o homem por quem tão inconvenientemente me havia acabado por apaixonar..."
Sophia
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Anel (www.ancient-bulgaria.com/images/ring.jpg )
“And when the day has all but ended
And our echo starts to fade
No you will not be alone then”
“O crepúsculo descia, sublime, sobre os pedestais que tinham suportado o Colosso de bronze, agora meio submerso, derrubado haviam já quase sete décadas por um terrível terramoto, o mármore resplendoroso erguendo-se mais de uma vintena de côvados acima das águas da preia-mar, as sombras alongando-se, coleantes, por sobre a ondulação pouco cavada do mar Egeu. Mandraki apresentava-se na azáfama característica de todos os portos, a distância dissimulando a algazarra mas não escondendo a fervência de um comércio marítimo que tinha ainda em Rhodes um dos seus principais empórios. Sentado sob os últimos raios solares daquele dia em que completara trinta e três anos, os meus olhos vagueavam pelas veracidades do presente enquanto os meus pensamentos se imiscuíam num futuro que se me afigurava insidiosamente indistinto, Freyja aparentando um desassossego feito de mistério que se ampliava de dia para dia. O maquinismo tomava forma, cada roda dentada resultando de demoradas observações e de extenuantes cálculos, a matemática nova a que chamávamos de trigonometria sendo desenvolvida à medida das exigências. As posições do Sol e da Lua podiam já ser representadas no Zodíaco, o calendário de trezentos e sessenta e cinco dias, ajustável para os anos bissextos, funcionando como referencial. Prontas estavam também as engrenagens que interpretariam, por intermédio de ponteiros, as posições de Marte e Vénus. Ela prometera-me desvendar todos os enigmas da sua existência assim que conseguisse predizer o alinhamento dos planetas, e os meus receios emergiam paulatinamente, intraduzíveis mas incisivos, a antecipação da hora da verdade aduzindo uma inquietude que tentava negar pela voracidade a que me devotava aos prazeres carnais, sublimemente propiciados por aquela mulher a quem me entregara totalmente, sem questionamentos…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Alinhamento Planetário (www.solarvoyager.com/images/art/Alignment%20by%20Frank%20Hettick.jpg)
Porque hoje é o dia do meu aniversário… Não o trigésimo terceiro, mas o quadragésimo…
“Rendi-me ao veludo do toque dos primeiros raios da aurora e à doçura da pele de Hiparco. As palmas das suas mãos foram descendo tacteantes pelos meus antebraços, estreitando ainda mais o aperto, aumentado a pressão insinuante do meu corpo nas suas costas. Demoradamente dei-lhe um outro beijo sobre a curva do pescoço, ternamente sentindo, sob os lábios, a pulsação que acelerava e a leve vibração das cordas vocais, num cumprimento matutino onde as palavras do dialecto nórdico comicamente se enleavam na sua incorrigível pronúncia grega. Poucas eram as palavras que lhe havia ensinado e ainda menos as histórias que lhe havia contado sobre a minha anterior vida, tendo todas sido pronunciadas ainda nos últimos dias sob o sol de Rá. Ele cumpria o acordo pronunciado por ambos naquela noite, eu acatava o antigo pacto de silêncio que me pesava mais a cada instante. Eu havia-lhe roubado as horas de luz, invariavelmente passadas no andar de baixo, mergulhando ambos em planos e tabelas, ferramentas e materiais, instrumentos e engenhos, sem lhe dizer para que usaria o mecanismo. Havia-lhe extorquido as de escuridão, repartidas entre o observatório no terraço, estudando os movimentos celestes sem lhe explicar o intuito final, e a cama de dossel, partilhando afectos e desejos sem lhe confessar por quanto tempo mais. Havia-o aproximado da terra que era sua por nascimento, mas furtado-o àquela à qual pertencia, por uma demanda só minha e cuja conclusão penosamente se abeirava.
Sentindo a minha imobilidade, desfez o abraço, girando sobre si mesmo para encarar a confusão do meu olhar que eu via espelhada no dele. Passou a mão pelos meus cabelos e uniu os seus lábios com os meus, ficando sustidas as dúvidas e o tempo, enquanto, no remoto horizonte, Hélios não afrouxava as rédeas do seu carro e paulatinamente cobria de luz a cidade de Rhodes da mesma forma de havia coberto de carícias a mulher que lhe dera o nome...”
Sophia
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Abraço (original em http://www.lovelydaniel.com/UserFiles/2007/4/18/47040_375x375.jpg)
“I could spend my life in this sweet surrender
I could stay lost in this moment forever”
Segunda Parte
“A alvorada anunciou-se resplandecente, os raios solares entrando pela janela entreaberta, a alvura das paredes caiadas reflectindo-os para encher de luz o quarto amplo, o despertar fazendo-se suave e demoradamente numa indolência tão aprazível quanto lasciva fora a noite. Levantei-me, o lençol de linho que me cobria sendo cuidadosamente afastado para a não acordar, a frescura do chão de mármore causando-me um arrepio que me percorreu todo o corpo, num terminante afastamento da sonolência que ainda me envolvia. Dirigi-me à varanda virada a oeste; o ar matinal ainda fresco e a magnífica serenidade azul do Mediterrâneo estendendo-se ante os meus olhos, tinham sempre o condão de me fazer sentir esfomeadamente revigorado. Antes da refeição da manhã, precedendo ainda o despertar daquela incrível mulher que me havia alterado a vida, deixei que as memórias me transportassem a Alexandria e à Biblioteca por onde me perdera entre centenas de milhar de rolos. Permiti que desfilassem mansas, as intensas recordações de um tempo cheio de aprendizagens e de ensinamentos, de teorias e de ensaios, de medições e de observações astronómicas, e contudo tão tremendamente incompleto. Debrucei-me sobre o parapeito, cerrei as pálpebras e revi-me naquela noite de há já três anos, escutando outra vez a pergunta a que respondi com uma peremptória afirmativa, Freyja exercendo sobre mim uma magia que não mais se desvaneceu, querendo saber se deixaria tudo para com ela partir para Rhodes, a premência de dar forma e vida a uma máquina manifestando-se na urgência do pedido.
Voltei ao presente, o toque suave da sua pele envolvendo o meu tronco desnudo num abraço repentino, os seus lábios beijando-me o ombro, o veludo macio da sua voz deixando-me absolutamente extasiado…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Rhodes (www.thegreektravel.com/rhodes/photos.html)
"(...) we forget
there's so much life
as morning comes"
“Entre um anel marejado de inscrições, apertava, sob a mesa de pedra, o lenço perfumado com flor-de-lis, numa raiva mal contida por ter mostrado fragilidade, por ter violado a distância que deveria ter mantido com aquele homem de braços atordoantemente quentes. Fingindo uma insólita concentração na tâmara que levava à boca, observava-o. Vendo-o a olhar fixamente as linhas de carvão tentava não abrir uma janela para a sua alma, mas para a imagem que ele construía, engrenagem a engrenagem, na sua mente. Vendo-o a morder o lábio inferior rubro era fácil imaginar as mais de três dezenas de roldanas a girarem umas sobre as outras com um tinido metálico que ecoava pelo seu entendimento, os milhares de dentes a encaixarem numa perfeição talhada num imaterial bronze, o trabalhado desenho dos ponteiros a moverem-se no quarteto de mostradores a cadências matematicamente precisas. Vendo-o a criar uma expressiva ruga na testa adivinhava que tentava deslindar a função do engenho esboçado pelo meu pulso que havia intencionalmente omitido medições, legendas e pormenores. Transferi a minha atenção para a abobada celeste cujo brilho das estrelas não era nem perturbado pela ira do nórdico Thor, nem sequer ofuscado pelo usual astro nocturno do egípcio Thot que hoje mostrava o seu lado negro. Porquanto, o firmamento era o cúmplice que ali partilhava os segredos do maravilhoso mecanismo.
Hiparco continuava a passar os dedos pelas fibras do papel, deixando as pontas seguir os sulcos das delicadas curvas que eu havia traçado com o movimento demasiadamente carregado. Ela fazia-o com a lentidão de dama que borda um véu de linho, com a perícia de escultor que examina um alto-relevo dum túmulo de faraó, com o afecto de homem que afaga as harmoniosas curvas duma mulher. O pensamento das suas mãos numa carícia pela minha pele nua causou-me um arrepio por todo o corpo, reprimi-o e agarrei ainda com mais força o lenço por baixo da mesa. Só então, ainda sentido a textura suavemente adocicada da tâmara nos lábios húmidos, fiz a pergunta que me havia levado àquela quente noite egípcia...”
Sophia
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (II) (www.bilbaoblogs.com/res/escepticos/Antiquitera.jpg)
“And the night came on
It was very calm
I wanted the night to go on and on
We were (…) in Egypt”
Fim da Primeira Parte
(Por ausência de um dos intervenientes na parceria, o conto será retomado assim que possível)
“A refeição foi frugal, as ostras e os peixes, as aves e as variadas carnes de caça soberbamente apaladadas sendo apenas provadas, numa inventada justificação para cada momento com Freyja, a sua presença parecendo libertar-me da necessidade de alimento, a sua voz serenamente feminina e simultaneamente firme envolvendo-me num universo tão dissemelhante daquele em que sempre havia vivido, os demorados gelos e os tumultuosos mares setentrionais descritos com perícia, as imagens formando-se na minha mente como se estivesse perante a magnitude de tais cenários. Falou-me de um tempo em que a sua estirpe governava o cume do mundo, dos dias em que a primavera fugia para norte, a neve transfigurando-se na água que enchia os rios, os botões explodindo em folhas e flores num ciclo interminável de renascimento da vida, um indescritível sorriso iluminando-lhe o rosto, a sua beleza ou o vinho fazendo-me sentir um estranho ruborizar das faces, um fascínio indizível despontando em mim…
As horas entravam noite adentro, os figos e as nozes acompanhando o hidromel bebericado entre frases e descrições, o semblante subitamente carregado, os olhos marejando-se-lhe de lágrimas, a recordação de uma violenta batalha entre potestades fazendo-a irromper
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (www.ams.org/images/smallgears.gif)
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