Meti-me à toa por um atalho do tempo para a procurar, os olhos castanhos brilhando de prazer e as rugas de expressão sulcadas em sorrisos abertos dando-me o ar despreocupado de quem bebe um café numa manhã solarenga de um domingo qualquer. Não raras vezes, captei aqui e ali uma impressão confusa de símbolos entre parênteses, a estrutura complexa das matemáticas dando-lhe um significado tão vasto e profundo que a minha mente recuava instintivamente, o receio de ser arrastado por aquela desmesurada força vital agindo como se o pânico da luz me empurrasse para a sombra. E então, desobstruía-se a razão num fluir de noções muitas vezes intuídas, as esquivas imagens geradas nos interstícios sinápticos urdindo a tapeçaria da compreensão, o entendimento nascendo frágil da incerteza progenitora, a minha face tornada esfíngica pelo esforço da concentração. Por vezes pergunto a mim próprio se a realidade não passará de um simples holograma ou se nada mais é que o resultado de meros pensamentos, uma absurda diversidade de palcos sendo povoada por actores inventados. Quase sempre persuado-me da tangibilidade de tudo, a verdade absoluta ao alcance do intelecto mostrando-se perfeita mas absolutamente esquiva, cultivando um absoluto poder de sedução…
Imagem: Verdade (http://static.flickr.com/118/292949477_64c13cbdbb.jpg)
Um dia hei-de de regressar ali, àquele lugar prodigioso onde as nuvens brancas são varadas pelos majestosos picos erguidos céu adentro, onde a vertigem de um olhar arrasta os sentidos para o indecifrável remoinho da convergência de seis séculos, o azul raro de uma temperatura de cor desabitual trazendo a ideia de um paralelo mais a sul, o soroche desatinando o sono com medonhos afogamentos afigurados e contudo incapaz de acanhar a tenção de ficar para apreender o símbolo das proezas projectadas. A cidade perdida, feita de massivas pedras talhadas cirurgicamente é a velha montanha em quíchua, a magnificência do engenho humano criando o inexequível, o granito cinzento contrastando com o verde dos socalcos agrícolas numa irrealizável tela hiper-realista, a localização privilegiada tornando-a fortaleza, refúgio do Inka e observatório do Inti. Chegarei num equinócio qualquer, a Intihuatana amarrando o poder do sol em alinhamento perfeito ao meio-dia, a sombra sendo alquebrada numa afirmação da arquitectura sabedora de segredos cosmológicos. Tenciono voltar a ouvir as águas tonitruantes do Urabamba e respirar aquela atmosfera única, quando regressar, por fim, a Machu Pikchu…
Vídeo: El Condor Pasa (http://www.youtube.com/watch?v=jpJkDZ9g9z4)
“Sinto sobre os ombros o peso dos séculos, feéricos rendilhados de noções abstractas espraiando-se na mente, a areia fina e já sem brilho de ideias outrora coerentes rangendo sob os pés de mil corpos possuídos. Fadiga maldita…! Cansaço desfeito numa massa pegajosa e informe a escorrer por mim abaixo, a vontade exaurida desabando no arruinamento infecundo de um tempo que nada significa. Nascido noutro lugar que não este onde prosperou, o pensamento reclama a radícula perdida no fosso de parsecs, a origem distante e antanha teimando numa vindicação infindável. Quero ser capaz de galgar as barreiras do espaço e regressar à quentura do sol mais branco, esta luz ofendendo a vista é amarela demais e ensandece os sentidos! Nunca me habituei a este ar, a densidade que não envenena o sangue parece atordoar o encéfalo que não me pertence e sinto-me um estranho na desconformidade de um mundo que não é o meu, o pasmo de dias passados trocado pela ânsia incorpórea ainda por esquecer… Não sou daqui, a identidade em dissonância gritando desapego, a essência etérea ambicionando autonomia…
- Pobre diabo, a demência fá-lo julgar-se alienígena…”
V.A.D. em Estranho
Imagem: Estranho (www.irtc.org/ftp/pub/stills/1999-06-30/strange.jpg)
Quis fechar o livro, mas mantive-me fascinado, a leitura prendendo-me como jamais supus ser possível, os olhos correndo pelas letras que se arranjavam em palavras, as palavras fazendo sentido e contando a história inventada de um mundo diferente. Via-me apanhado numa armadilha de estranha e dominadora beleza, a eloquência da escrita e a plausibilidade do enredo arrastando-me para as profundidades de um oceano assente no leito de uma lógica em completo dissentimento daquilo que é humano mas tendo, contudo, uma chocante enunciação de verdade, a universalidade das leis primevas a ser respeitada na íntegra, trazendo à expressão escrita a obsessão de um rigor hipnótico. Isolamento… Afastado de tudo, até da música que soava baixinho, enredava-me na fluidez da acção e vivia na sob a pele do protagonista, a minha mente gerando imagens de lugares engendrados, a semente da imaginação criando raízes e frutificando. Quis fechar o livro mas hesitei, como se houvesse uma razão pela qual o não devesse fechar, até que a voz dela soou novamente, suave e num tom de desejo prometido: “Vem, vamos para a cama…” Quebrou-se um encanto e fechou-se o livro; há magias indiscutivelmente mais poderosas…
E a chuva havia parado. À esquerda, a terra macia, lavrada de castanho-escuro, parecia exalar o cheiro de mil manhãs de orvalho, mas era numa tarde do princípio de um Janeiro qualquer, quando as nuvens plúmbeas encobriam o sol e o vento frio soprava, arisco, sobre os ramos nus das árvores do jardim, que a minha consciência assegurava estar. À minha frente, a extensão verde da relva era delimitada por um canteiro de rosas por desabrochar, encostado ao muro de tijolo rebocado, para lá do qual o marulhar da água, em corredura pela valeta, trazia à lembrança outros Invernos e o agradável barulho da regueira cheia, no cavado do pequeno vale adjacente à velha casa da minha meninice, a grossa porta de madeira, adjacente ao pátio encharcado, servindo de acesso ao palheiro desnivelado, onde os voos em queda livre se faziam a partir do lintel, um ou dois metros acima do nível da palha solta que amortecia a queda e fazia sonhar com aventuras aéreas, um batalhão de pára-quedistas saltando para um território inventado. Indeclinável, o recuo a um tempo em que as tardes depois da escola eram passadas em brincadeiras soltas, o irmão e os primos como camaradas, o aguaceiro caindo lá fora ressoando nas telhas sobre os barrotes assentes na espessa viga mestra, contradizendo a sequidão da forragem enxuta…
Imagem: Chuva (http://tn3-2.deviantart.com/fs6/300W/i/2005/071/2/f/Rain_by_silent_reverie.jpg)
A In, no seu último post, teve a meritória ideia de transcrever um texto de Eduardo Prado Coelho, no qual ele faz uma brilhante dissertação, quer sobre o estado da nação, quer sobre a mentalidade dos portugueses. É um texto que realmente merece ser lido, e sobre o qual se deve fazer uma profunda reflexão. Não sendo meu hábito abordar assuntos relacionados com política, não deixo de ter uma opinião formada sobre estas questões e acrescentei, num exercício de escrita que às vezes me apetece desenvolver, inúmeras outras coisas sob a forma de comentário. Resolvi publicá-lo:
Pertenço a um país onde a classe política é composta, na sua maioria, por pessoas medíocres que, revelando-se incapazes de singrar no mundo do trabalho, usaram da esperteza para encontrar um tacho que lhes dá muito a troco de nada. Pertenço a um país onde algumas empresas, detentoras de um desequilibrado monopólio, se acham no direito de cobrar, por péssimos serviços, valores totalmente desadequados. Pertenço a um país onde, de facto, a luz e a água são bens demasiadamente caros. Pertenço a um país onde os peões se acham no direito de atravessar uma rua em qualquer parte, sem que sequer se dignem olhar. Pertenço a um país onde existem leis, nunca cumpridas, que determinam que só se deve iniciar a travessia de uma passadeira se não existirem veículos em aproximação a menos de vinte metros. Pertenço a um país onde as autoridades, em vez de praticarem uma política de sensibilização e dissuasão, se entregam descaradamente àquilo que é vulgarmente conhecido por caça à multa. Pertenço a um país onde se perdeu a cultura do trabalho e onde a formação profissional não passa de uma farsa. Pertenço a um país onde a maioria dos pais se demitiu da educação dos filhos e acha que a escola tudo tem de resolver. Pertenço a um país em que o governo privilegia o laxismo e cria estatutos absurdos, com o único e exclusivo fim de melhorar as estatísticas, ainda que para isso possa comprometer o futuro dos próprios jovens. Pertenço a um país em que se perdeu o respeito para com os idosos. Pertenço a um país onde o telelixo é o conteúdo preferido das salas de estar. Pertenço a um país onde os municípios e as empresas a eles agregadas não passam de uma enorme bolsa de emprego para os “boys”. Pertenço a um país onde quem trabalha tem de pagar impostos tantas vezes incomportáveis, sem que veja melhoria alguma nos serviços essenciais, nomeadamente a nível da saúde. Pertenço a um país onde os ex-vice-governadores e governadores do banco de Portugal têm a distinta lata de apregoar a necessidade de alterar o sistema de pensões, obrigando o comum dos mortais a trabalhar até morrer, quando cozinharam, na grande panelinha dos seus gabinetes, leis que lhes permitem o usufruto da reforma por inteiro ao fim de apenas seis anos de serviço. Pertenço a um país onde a banca, que nada produz, usufrui de benefícios fiscais com os quais as empresas que realmente criam riqueza nem sequer ousam sonhar. Pertenço a um país que, a continuar assim, verá um dia a esperança morrer…
V.A.D.
“Olho para as grandes realizações do pensamento humano e admiro-me com aquilo que foi já alcançado. Contudo, interrogo-me constantemente sobre o quanto haverá por descobrir…”
Descia o trilho empedrado, sulcado pelas passadas de incontáveis pés, erodido pelas inumeráveis chuvas de muitos Invernos e parecia-me estar a avançar sobre uma ruína de ossos esbranquiçados pelo sol de séculos sucessivos. Na margem do ribeiro, por onde a água havia há muito deixado de correr durante todo o ano, ainda se viam as lajes onde os trapos eram esfregados, enquanto as línguas viperinas lavavam roupa suja. Dir-se-ia que o velho casebre estava há muito abandonado, as paredes desnudas mostrando as pedras irregulares cuidadosamente empilhadas numa harmoniosa confusão, escurecidas pela inacabável passagem das estações. O telhado, vergado pelo peso dos anos, fazia lembrar uma tela castanho-escura e irregular, cheia de salpicos amarelados, os líquenes e tufos de erva conquistando aquele território aéreo. Da fuga, encarvoada pela fuligem, soltavam-se rolos de fumo e no ar pairava o agradável cheiro da madeira em combustão. Antecipando as palavras que tão bem conhecia, “pode entrar, a porta ‘tá aberta!”, bati na vidraça do postigo. Um rosto, cheio de rugas e tisnado pela dura vida no campo, abriu-se num sorriso de rara espontaneidade. Entrei e dei-lhe um abraço caloroso. A fumaça, que enchia a casa e a alma do velho, começou de imediato a dissipar-se, escorrendo para a tarde fria através da porta entreaberta.
Imagem: Casebre (www.gulfislandsguide.com/photos-gabriola/images/stonehouse.jpg)
Da água, o meu olhar voltou à água. O reflexo mostrava agora um sorriso no rosto. Desaparecera, como que por artes mágicas, aquela expressão indecifrável de cansaço, que me tornava semelhante a uma estátua, mas guardei-me num silêncio de estrebuchante tranquilidade. Estava perdido num labirinto de rememorações e fazia de conta que havia retornado aos dias de antanho, quando a brincadeira era o meu mundo, edificado com a mansa simplicidade das horas despreocupadas. Tantas vezes aquele tanque havia sido um oceano imenso, onde os barquinhos, construídos de madeira e cortiça, capitaneados por lendários piratas e oficiais ao serviço de reis imaginários, se viam envolvidos em duríssimas batalhas navais. Tantas vezes havia regressado, em choro, a casa da minha avó, a roupa encharcada pela parvoíce implicante do meu irmão, que achava engraçado molhar-me… A chuva chegou sem aviso, num aguaceiro ensolarado, os pingos grossos e frios batendo com força nas pedras irregulares da parede do velho poço, à beira da ruína, depois de anos de desuso. Levantei os olhos e fui atingido bruscamente pela constatação, evidente e agradável, de que a aldeia das minhas raízes, embora jamais tivesse achado os prazeres da cidade, continuava a ser um bálsamo para a minha mente.
Imagem: Poço (produção própria)
É nas coisas simples e pequenas que encontro a maior beleza. Complexidade infinita transformada subtileza, enche-me de inquietações ardentes e de emoções serenas, alumia a minha mente e alivia-me as penas. Misto de peso e leveza, que me fortalece e seduz, preenche de calor a alma vazia: onde antes nada havia, cola pedaços de luz. Para a elevação me conduz, fascina e serve de guia…
É na quietude de certos momentos, que descubro a minha vida, de ousadia e temores preenchida, feita de horas felizes e alguns tormentos, cheia de êxtases e desalentos, existência intensa e sofrida. É na agitação dos dias pacatos, que me apercebo de quem sou: futuro que ainda não se revelou, somatório de instantes transactos. Feito de raciocínios e de actos, simples ser, que a natureza criou…
Vídeo: Ser Humano (www.youtube.com/watch?v=qjVuSK62CHU )
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