“O Agora é este instante, um bebé recém-nascido, um velho moribundo, a sede de todas as esperanças, um átomo de tempo sem preparação, um ramo da árvore da existência, um fotograma do filme em que somos os protagonistas, a palavra que neste indefinível momento é lida no Grande Livro. É a materialização de todos os passados, indestrutíveis e preciosos, contudo esfumados e difusos, assente sobre a inacabável sucessão de momentos. É a condensação de todas as alternativas possíveis num ponto temporal tão concreto como insubstancial, instantaneamente posto de parte, relegado para o amontoado de momentos pretéritos, para que um novo e mais actual ponto existencial se forme. O Agora é algo que se experimenta, é um toque, um cheiro, um som, um olhar, um sabor, um pensamento fugaz, um raciocínio ilusório, ou talvez um inane e onírico tempo, destituído de forma, envolto na bruma fantasmagórica de um sono sem sonhos. Pode ser um vislumbre daquilo que se é, uma memória daquilo que se foi, ou a invenção do que se poderá ser…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Instante (http://infinitezoom.com/gallery5/instant.jpg)
“A água fria tocou-me a pele e, instintivamente, inspirei profundamente, enquanto esfregava vigorosamente o tronco. Ao fim de alguns segundos, o meu corpo habituou-se à temperatura, e a respiração regressou à normalidade. De olhos fechados, comecei a saborear aquela sensação de frescura que se apossava de mim, revigorante e tão necessária. Durante vários dias havia vagueado por aquele estranho e seco deserto, uma planura imensa de pedras irregulares que tornavam a caminhada ainda mais penosa. Julgava-me irremediavelmente perdido naquela vastidão sem fim e, embora continuasse sem saber o que procurava, aquela queda de água, que trazia a fresquidão das elevadas altitudes da cadeia montanhosa que se erguia à minha frente, representava uma espécie de bálsamo que curava algumas feridas da mente. Recomposto, sentei-me sobre uma grande laje e deixei que os raios avermelhados do Sol Menor me afagassem, enquanto secavam a minha roupa puída. Em breve continuaria a minha busca, que desconfiava ser infindável…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Queda de Água (Original em www.dallasnews.com/s/dws/img/09-05/0914waterfall.jpg)
“No escaldante deserto da sua existência, percorria penosamente um caminho em círculos, a língua seca e intumescida, a sede a infernizá-lo, a pele vermelha de fogo e seca de sol. Os lábios gretados e entreabertos pareciam clamar por algo que não estava ao seu alcance, e mal abria os olhos: deixara de conseguir suportar a luz intensa que o ofuscava. Precisava de uma sombra, sonhava com um oásis de frescura que sabia existir algures a sul, ou a norte, já nem sabia… Aliás, parecia-lhe agora nunca ter sabido. Os seus passos sucediam-se, mecânica e compassadamente, sem rumo, tal como os pensamentos, ritmadamente desconexos e tão absurdamente gritados dentro de si próprio. Seria a cadência acelerada da pulsação, o louco latejo das suas veias salientes a dar-lhe a ilusão de ouvir o martelar seco de mil vozes em uníssono? Seria a hipertermia a responsável pela fantasia, repetitiva e insidiosa, de estar cada vez mais próximo de um fresco e prateado ribeiro, cheio de promessas e de esperanças? Não iria desistir enquanto as evanescentes forças o não abandonassem de vez. Porque a resignação não o faria encontrar a paz e a busca, essa, continuaria…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Meditando no Deserto (www.ufrgs.br/fotografia/port/05_portfolio/olga_gouveia/images/Meditando-no-Deserto.jpg)
O último e agonizante grito do Sol agigantou-o até engolir a própria Terra, e energia vermelha incinerou tudo o que restava na superfície. A estrela, outrora pulsante e cheia de vivacidade, entrou no seu derradeiro estágio e encolheu até ficar do tamanho de um planeta. O coração da anã branca continuou, durante evos, a irradiar a energia produzida pela fusão do carbono e do oxigénio até que, por fim, a gélida obscuridade tomou conta de tudo.
Na mina, o corpo do tirano jazia sem vida. O suprimento de tudo o que é necessário à existência esgotara-se havia muito tempo. Nem planos, nem máquinas, nem a magnífica inteligência humana conseguem contrariar a entropia.
Posfácio
Há quinze ou vinte anos, era eu ainda um adolescente, tive a oportunidade de ler um fabuloso conto de ficção científica, do qual não me lembro nem do título, nem do autor. Sei, contudo, que a incrível história me marcou, a ponto de ter procurado inúmeras vezes o velho livro, para o reler. Nunca o encontrei; provavelmente emprestei-o e, como acontece tantas vezes, não mais foi devolvido. Aquilo que fiz ao longo destes cinco posts foi uma tentativa de recriar parte da história, pegando em elementos que me ficaram na memória. Outras partes reflectem aquilo que supostamente acontecerá ao nosso Sol e ao nosso planeta, dentro de muitos milhões de anos. As palavras são minhas, e sei bem que me falta a mestria do autor do conto original, mas esta é a minha forma de o homenagear.
Imagem: Desolação (http://images.inmagine.com/168nwm/imagesource/is228/is228034.jpg)
Não…Quatro mil e quinhentos milhões de anos não são a eternidade: escoaram-se como areia por entre os dedos de uma mão aberta. No núcleo da estrela que foi o sustentáculo de tudo, o hidrogénio esgotava-se, e a velha fornalha nuclear enfraquecia, deixando à gravidade a palavra final. Colapsos consecutivos, seguidos de expansões violentas, eram os estertores de uma morte anunciada. A cada contracção, um intenso flash de hélio iluminava as lúgubres planuras espaciais e, na Terra, a temperatura tornava-se insuportável. Rios secavam, mares evaporavam-se, e a vida, que nada podia contra a escaldante aridez, ia lentamente perdendo a batalha. O que restava da humanidade partira há muito, rumo às estrelas, em busca de um novo e mais acolhedor local, onde os filhos dos seus filhos pudessem prosperar. O berço tinha sido abandonado em definitivo...
Imagem: Flash de Hélio (http://outreach.atnf.csiro.au/education/senior/astrophysics/images/stellarevolution/redgiantartistnasa.jpg)
Trinta e três anos se passaram. O desaparecimento misterioso do ditador fora motivo de regozijo moderado. Há sempre quem se sinta mais ameaçado pela esperança de liberdade do que pela monótona dureza de uma vida agrilhoada. Nas profundezas da mina, a máquina zumbia, alheia a convulsões sociais e a reajustes de poder e, no seu interior, aquela espécie de coma sem sonhos do déspota seguia o seu curso, indiferente à feroz guerra civil que havia eclodido. Múltiplas facções lutavam pelo domínio; usavam de todos os meios para o conseguir e, numa cegueira raivosa, não hesitavam em empregar mísseis nucleares. Um deles, vítima de súbita avaria, despenhou-se e explodiu num local ermo. Toneladas de rocha vaporizada precipitaram-se sobre o olho que contava os dias. Para o computador, o tempo havia parado…
Montanhas nasceram e desfizeram-se em pó, oceanos engoliram continentes inteiros, civilizações ergueram-se e declinaram, incontáveis gerações arrastaram-se penosamente sobre este nosso velho planeta. A própria humanidade tornou-se irreconhecível, à medida que os éons se escoavam. O coração do Culpatu pulsara apenas alguns milhares de vezes…
Imagem: Oceano (www.nhptv.org/natureworks/graphics/ocean.jpg)
E foi assim que os planos foram meticulosamente elaborados e a máquina soberbamente construída, sob um sigilo absoluto. O Culpatu dispunha de meios para o conseguir: nos regimes autocráticos falar demais é perigoso, e os homens depressa se tornam meros robots acéfalos quando se trata de preservar a própria vida… Um olho electrónico, camuflado e à superfície, sentiria a sequência dos dias e das noites e, passadas quarenta mil alvoradas, o computador iniciaria a sequencia que haveria de fazer a besta retornar à verdadeira vida. Um pouco mais de cem anos, uns poucos batimentos cardíacos e ninguém que o tivesse conhecido estaria ainda vivo. Não seria incomodado; adaptar-se-ia facilmente às mudanças, ou não fossem todos os ditadores dotados de grande inteligência e de extraordinárias capacidades. Viveria faustosa e despreocupadamente, separado das atrocidades que cometera pela densa cortina de um passado que sempre tende a ser rapidamente esquecido. Sim, que a humanidade tem memória curta! Os registos, por muito fiáveis que sejam, não apreendem as emoções e as dores: são desprovidos de sentimentos e nunca substituirão aquilo que o cérebro guarda...
Imagem: Robots (www.icicom.up.pt/blog/take2/robot-robots.jpg)
As décadas arrastavam-se, penosamente, para as gerações que lhe foram sucedendo. Para o Culpatu, enclausurado naquela máquina da eternidade, um século não era mais que um minuto, e a contínua sucessão de dias e noites pouco representava. A câmara selada, construída no interior de uma velha e há muito abandonada mina de tungsténio, garantia-lhe segurança e impunidade. Sistemas complexos, alimentados por energia solar e por um pequeno mas eficaz gerador nuclear, mantinham a temperatura dois graus acima de zero, enquanto válvulas e sensores se encarregavam da atmosfera, garantindo as oitenta partes por milhão de sulfeto de hidrogénio, necessárias à animação suspensa. Nunca a civilização havia assistido a uma tão grande brutalidade por parte de um ditador. As fragilidades do tecido social haviam criado um monstro que não hesitara em se apoderar, a seu bel-prazer, da vida de mil milhões de almas, manipulando-as primeiro e escravizando-as de seguida, até acumular um poder e uma riqueza inimagináveis. Mas não tinha ninguém em quem confiar, e o constante medo de ser traído por quem lhe era próximo, o medo de ser assassinado, o medo da rebelião eminente, o medo levou-o a procurar uma fuga. Mas, para onde? Não havia um único local no velho planeta onde se pudesse esconder. Restava-lhe apenas uma solução: fugir para o futuro para escapar do futuro…
Imagem: Mina (www.chayden.net/Allison98/pic/mar01-018.jpg)
"Hoje...? Hoje vou-me remeter a um silêncio confortável, não por não ter nada para dizer, mas simplesmente por me sentir preguiçoso. Afinal, poderá alguém dizer que nunca se sentiu assim...?"
V.A.D. em Algures
“Não parar para pensar na vida é como percorrer de olhos vendados um belo caminho.”
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