“Trazia neles negrume da noite, os olhos postos num ponto quimérico insinuando a melancolia dos crepúsculos cinzentos e o silêncio lacrimoso da desafortunada existência. O cabelo caía-lhe pelos ombros, uma anarquia desordenada de filamentos de azeviche ondulando ao sabor do vento catabático que soprava de norte, as costas voltadas ao sol numa obstinada recusa de quentura, a pedra onde se sentava fortalecendo a frialdade do Inverno tardio e persistente. Ausente num alhures diviso, a mente apartada esquecera-se do corpo dessensibilizado pelos sentidos desliados, a mágoa de algum indeclinável desencanto arrojando-a num precipício contrário à razão. Tocou-a ao de leve com a suavidade de um sussurro, o aveludado das palavras brotando dos seus lábios como uma carícia, a lhaneza de um olá arrebatando-a à catalepsia em que parecia estar deliberadamente mergulhada, o pestanejar redobrado denunciando o regresso à inteligível realidade, uma abrupta negação do abismo trazendo um sorriso embaçado. Respondeu-lhe com a firmeza espontânea de um olá, ele sentando-se junto a ela, ambos olhando a espuma branca que o vento arrancava às ondas…”
V.A.D. em Precipício
Vídeo: Edge Hill (Groove Armada) (www.youtube.com/watch?v=HEAhRhjtK58)
De
**** a 12 de Fevereiro de 2008 às 22:04
"O cabelo caía-lhe pelos ombros, uma anarquia desordenada de filamentos de azeviche ondulando ao sabor do vento catabático que soprava" - Este texto foi um choque, um definitivo, inesperado, arrebatador choque depois dum dia cansativo. Revi-me duma forma demasiado abrupta, uma espécie de dejá vu do momento da manhã em que, em certa altura, me “sentei as costas voltadas ao sol numa obstinada recusa de quentura, a pedra onde se sentava fortalecendo a frialdade do Inverno tardio e persistente”, ao lado de amigos e colegas, mas isolada, agarrando-me a mim mesma, num ponto ligeiramente mais alto que eles.
A pedra era, contudo, dum banco de lavra humana. Faltou-me o mar à minha volta e esse “olá” no qual confesso que pensava – num “olá” determinado, conhecido, desejado, que teria afastado tudo o “negrume da noite”, que teria pedido à mente para regressar e que aqueceria o corpo, teria afastado a mágoa. Fui arrancada desse confortável estado de letárgica melancolia por o toque frívolo duma campainha e não por um sussurro quente junto ao pescoço, daqueles acompanhados por um sopro que arrepia a pele, por um distraído afagar das mãos no ombro, por um sedento inalar da essência que se desprende desse anárquico cabelo.
O texto absorveu-me...
Beijos,
E que tenhas uma noite bem mais cheia de maresia que a minha passada a trabalhar em frente a um computador
Sophia
PS – Na altura ouvia música, se conhecesse esta antes teria sido uma boa candidata para me acompanhar... deveras sugestiva
De
V.A.D. a 13 de Fevereiro de 2008 às 02:14
A mais dilacerante de todas as solidões é aquela que se vive no meio da multidão, o isolamento da ilha que somos sendo afirmado de forma contundente... Sendo pura ficção, esta espécie de retrato pretende afirmar que as pontes podem ser construídas com a simplicidade das palavras, o frio da existência sendo aplacado através de pequenos gestos... Metáforas... Gosto de as ver nascer, incomplexas e espontâneas, à medida que vou escrevendo... :-)
Nem te sei dizer o quão espantado fiquei, ao saber que a tua manhã tinha tido um momento assim, a tua alma apartada de ti, perdida em divagações ausentes. Sei que terias gostado de não ter sido a campainha a devolver-te à realidade; melhor seria, de facto, o toque suave de uma voz... Haverá certamente um dia, um alguém que te arranque da melancolia com um "olá" desejado... :-)
Fico contente por saber que, de certa forma, o texto te "tocou"... :-)
Desejo-te uma noite muito, muito agradável...! Groove Armada é excelente companhia, mas permite-me que te sugira Camera Obscura... :-)
Um beijo e um grande sorriso... :-)
De
JoãoSousa a 12 de Fevereiro de 2008 às 22:58
pergunta de leigo que nao sabe mais o que dizer: como te surgem coisas destas assim de repente?
De
V.A.D. a 13 de Fevereiro de 2008 às 01:45
Amigo, não sei que te dizer... Boas ou más, as coisas surgem espontaneamente, os pensamentos em atropelo sendo transcritos, as imagens que se formam na minha mente sendo esboçadas em palavras...
Desejo-te uma magnífica noite!
Um abraço.
De
Emanuela a 13 de Fevereiro de 2008 às 00:13
Por maior que seja a dor, um toque de carinho verdadeiro é capaz de amenizá-la. O simples "estar presente", faz muita diferença.
Lindo texto!
Um beijo.
De
V.A.D. a 13 de Fevereiro de 2008 às 01:43
Partilhar o peso da dor... Pode ser um alívio para quem sofre e um gesto nobre por parte de quem se presta a ajudar... É verdade, amiga: basta a presença, mesmo que silenciosa. Os sentimentos não precisam de ser apregoados... :-)
Desejo-te uma magnífica noite!
Um beijo... :-)
De mnike30 a 13 de Fevereiro de 2008 às 08:36
Olá,
De cataléptico o teu texto não tem nada. A tua actividade descritiva não o permite!
Quanto ao negrume melancólico dos... crepúsculos cinzentos e silêncio lacrimoso... são estados. Estados que nos exigem mudança.
Penso que seja nestes momentos que a mente humana utiliza uma catapulta para crescer e se fortalecer... ou então não, e quando "não", é mesmo abismal. Mas a mente tem um enorme poder, o poder de escolha...
Há presenças que não nos dizem nada e há outras que nos dizem tudo, ainda que em silêncio...
:)
Have a nice day!
Beijinho
P.S som incrivelmente adequado a esta leitura!
De
V.A.D. a 14 de Fevereiro de 2008 às 01:40
Estados de alma... Momentos de indefinível tristeza, a amargura do desalento apossando-se de um ser...
Subscrevo-te: é na dificuldade que se cresce interiormente, é provando o acre que se aprecia a doçura. Sim, é espantosa, a capacidade da mente. Permite que problemas aparentemente insolúveis sejam resolvidos num ápice, superando-se, enchendo-se de determinação, vencendo abismos... :-)
Há silêncios tão cómodos...! Valem por milhentas palavras ocas, definem melhor o que se sente que todos os verbos conjugados...
Esta música toca-me profundamente; sou capaz de ouvi-la vezes sem conta.
Desejo-te uma noite muito, muito agradável, cheia de momentos melodiosos!
Um beijo e um sorriso... :-)
De ______ a 13 de Fevereiro de 2008 às 12:53
O silêncio pode ser a maior das cumplicidades.
Gostei tanto deste "abismo" de palavras.
Um beijo a sorrir :)
De
V.A.D. a 14 de Fevereiro de 2008 às 01:44
O silêncio cómodo revela entendimento cúmplice, dois seres percebendo a empatia, as palavras deixando de ter sentido quando se sente o que não precisa de ser explicado...
Gostei que tivesses gostado... :-) Desejo-te uma noite magnífica!
Um beijo, também ele sorridente... :-)
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