Terça-feira, 22 de Janeiro de 2008

O Velho

                  

Sobre a planura desértica, um halo de radiância avermelhada afundava-se no negrume frio do céu estrangeiro, poucos graus acima do horizonte longínquo. Curvado sob o peso da carga, um ente antropomórfico caminhava lentamente na penumbra, os pés arrancando torvelinhos de poeira da secura de um chão tão morto quanto o próprio mundo, a sua fantasmagórica sombra esboçando-se sobre o solo pedregoso em contornos esbatidos, desdizendo a quietude da paisagem numa efémera afirmação de vida, as roupas pesadas e puídas toldando-lhe os movimentos e conferindo-lhe uma aparência pouco humana. A intervalos regulares detinha-se, o tronco rodando, a cabeça enviesada perscrutando o trilho já percorrido em jeito de avaliação, o sopesar do esforço numa tentativa de perceber o resultado, a respiração ofegante traduzindo a fadiga de incontáveis dias. Houvera um tempo antes e ele fora dono da existência, nenhum caminho parecendo demasiado penoso, nenhuma energia querendo ser definitivamente exaurida num bafejo vazante de renúncia. Agora, o arrebatamento de outras épocas desaparecera, esmagado pelo inelutável escorrer das décadas, cada passo representando a aproximação do término. Deitou-se, deixando que por fim as trevas desencorajadoras o envolvessem num silêncio gritado em suspiros de resignação, a meditação sobre o que o trouxera à Terra enchendo de débeis pensamentos a mente prostrada. O velho, fechando os olhos lacrimejantes, deixou-se finalmente levar…

Vídeo: Old Man (Neil Young) (http://www.youtube.com/watch?v=Vef03k5i8VI)


publicado por V.A.D. às 01:26
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8 comentários:
De JoãoSousa a 22 de Janeiro de 2008 às 21:22
uma palavras: espectacular!
Outras palavras, até senti em mim um arrepio...


De V.A.D. a 23 de Janeiro de 2008 às 01:19
Obrigado, amigo. Tentei, como aliás sempre faço, transmitir através das palavras a intensidade com que as situações se desenvolvem na minha mente...
Desejo-te uma excelente noite!

Um abraço.


De **** a 22 de Janeiro de 2008 às 23:38
"Houvera um tempo antes e ele fora dono da existência" - É talvez isso o que mais me estranhe na velhice, que faça nascer algo que me aperta o peito. A perspectiva de perder um bem depois de ter tido acesso a ele é simplesmente sufocante. Depois duma vida toda a lutar para ser consciente do que se passa à volta, deve ser horrível perder essa consciência, aproximar-se da senilidade, tornar-se dependente para as funções mais básicas (por doença, fatalidade ou, mais naturalmente, devido ao peso que cada hora exerce em cima dos nossos ombros cada vez mais curvados).

Começaste o texto duma forma que não poderia deixar adivinhar o final. Em cada palavra que ia avançando, ia descobrindo um pouco do quadro, levantando um pouco a bruma que tinhas lançado sobre a cena ao pôr-do-sol, até ao final em que é esse velho que se põe pela última vez. Conseguiste prender.
Metafórico ou não, teve um final invejável por muitos. Não me parece que este velho tenha sido completamente "esmagado pelo inelutável escorrer das décadas", ainda conseguiu ter consciência de que era levado, não perdeu a sua dignidade, não definhou por completo. Ainda conseguiu resistir um pouco para se encaminhar para o seu desértico leito de morte pelo seu próprio pé.

Beijos,
já que o "halo de radiência avermelhada" se afundou por hoje, que passes uma óptima noite, a pior de todas aquelas que hão de continuar a vir por "incontáveis dias"

Sophia


De V.A.D. a 23 de Janeiro de 2008 às 01:41
Aquilo que referiste não só me causa estranheza como me amedronta. Estando ainda a "meio do caminho", reflicto muitas vezes sobre essas perdas e sobretudo sobre as dependências. Tenho a sorte de ter as minhas avós ainda presentes na minha vida, uma delas sendo o exemplo de como se pode envelhecer de forma bonita, a lucidez, a vitalidade e a ânsia de aprender parecendo negar a carga dos oitenta e três anos de existência. Gostaria de poder envelhecer assim, confiante num futuro cada vez mais curto, mas olhando o passado com tranquilidade... :-)

O texto tem algumas metáforas: a carga, a sombra esbatida, a planura desértica de um fim eminente... O esforço sobre-humano da recusa desse fim e a aceitação do inevitável, não como uma desistência mas como a mágoa de ter de partir...
Quis frisar a importância de não baixar os braços até que nada mais se possa fazer...

Não me canso de agradecer a forma como demonstras a tua amabilidade, seja através da maturidade das tuas palavras, seja pela assiduidade das tuas visitas e quero, também, desejar-te uma noite assim, igualzinha à que me desejaste!

Um beijo... :-)


De Emanuela a 23 de Janeiro de 2008 às 00:01
Tuas palavras tornam o texto tão forte, como se de fato tivésses vivido toda a experiência...
Um beijo!


De V.A.D. a 23 de Janeiro de 2008 às 01:45
Amiga, felizmente não vivi a experiência mas, na minha imaginação, há finais assim, a perseverança assumindo um papel crucial, a desistência sendo recusada até à inevitabilidade... Admiro os velhos que teimam em continuar a caminhada, ainda que as dificuldades lhes pesem cada vez mais...
Desejo-te uma excelente noite, amiga!

Um beijo... :-)


De In a 27 de Janeiro de 2008 às 17:31
E que bom que era que todos pudessemos acabar assim! Com esta dignidade, com esta "força".
Meu caro amigo, acho que não preciso de lhe dizer o quanto me tocou este texto.
Quanto à música estou a ver que temos muitos gostos em comum...

Um beijo... :)


De V.A.D. a 27 de Janeiro de 2008 às 23:34
Poucas coisas me amedrontam, mas o envelhecimento sem dignidade constitui de facto um dos meus tenebrosos receios.
Minha cara amiga, entendo que o texto a tenha tocado de forma profunda, pois nem sou capaz de imaginar o que sente por ver a sua mãe privada desta lucidez que todos merecem, nos dias que prenunciam o final. Resta-me manifestar o desejo de que, embora assim, ela possa não sofrer...

Há músicas e interpretes que realmente não deixam de estar presentes ao longo da vida... :-)

Um beijo... :-)


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