Segunda-feira, 24 de Dezembro de 2007

Artefacto (XI)

“Tinha as mãos frias e o rosto insensibilizado, a rigidez dos músculos contrastando com a agitação dos pensamentos que, em barda, cruzavam a minha mente, no espinhoso empreendimento de reconstituir os acontecimentos recentes. Havia sido remetido, por um período incerto, para um lugar onde nada existia, nem sequer o tempo, pelo menos em qualquer sentido inteligível do termo. Durante esse ápice, percebia apenas a minha existência, com uma impressão fabulosa de luz azul, as memórias dispersas criando imagens surreais, os raciocínios falhos de consistência. Depois, os sentidos foram-se reabilitando e agora tornava-se óbvio que me encontrava num engenho em órbita, prisioneiro daqueles seres que me haviam apanhado de surpresa e arrojado para as imensidões do espaço, incapaz de contrariar os seus intuitos, fossem eles quais fossem. Não sabia o que me iria acontecer, mas estava disposto a lutar, assim que surgisse a oportunidade!  

O Alto Comando, reunido no Concílio dos Planetas, analisava em tempo real as principais informações que iam sendo extraídas da sonda, o entrelaçamento quântico permitindo a transmissão instantânea dos dados, os transdutores, ainda que separados por um imenso golfo espacial, agindo como uma só máquina. As primeiras ilações foram tiradas ao mesmo tempo por quase todos os noventa e seis governadores planetários. Aquela raça, jovem e belicosa, havia passado grande parte de sua História num conflito permanente, os raros períodos de paz ensombrados por genocídios terríveis, a ânsia de poder levando a actos de uma atrocidade inimaginável. E aquela capacidade estranha de agir por mera intuição, a lógica racional a ser muitas vezes abandonada em prol de uma emotividade que não cabia no entendimento de um réptil…! Num consenso absolutamente inédito, foi deliberado que aquele planeta fosse declarado interdito, assim que o humano fosse recolocado, ileso, na superfície terrestre. Não podiam apostar na ocupação de um planeta cuja espécie dominante sabia o que era a resistência às invasões e, decididamente, não podiam arriscar o contágio por aquela doença chamada emoção.

V.A.D. em Artefacto

Imagem: A Terra Vista de Órbita (www.nasa.gov/images/content/161108main_iss013e77965.jpg)

música: Philosophy Of Time Travel (Michael Andrews)

publicado por V.A.D. às 02:06
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10 comentários:
De doce amor a 24 de Dezembro de 2007 às 17:14
Gosto de ficção.

Feliz Natal ...dos confins da Galáxia.

Beijinho doce


De V.A.D. a 26 de Dezembro de 2007 às 14:16
Agradeço-te os votos, e espero que o Natal te tenha trazido tudo aquilo que pudesses desejar.
Desejo-te também a continuação de uma quadra festiva muito agradável!

Um beijo... :-)


De JoãoSousa a 25 de Dezembro de 2007 às 13:35
Desejo-te um feliz e óptimo Natal! Sem mais palavras, mas muito sentido


De V.A.D. a 26 de Dezembro de 2007 às 14:18
Obrigado, amigo. Também espero que o Natal te tenha sido muito agradável e formulo o desejo de que esta quadra festiva continue a ser favorável.

Um abraço.


De ______ a 26 de Dezembro de 2007 às 11:05
Excelente, excelente texto! "...não podiam arriscar o contágio por aquela doença chamada emoção." Mas s en fosse a emoção seríamos zombies, não sofreríamos mas tb n sentiríamos o sabor da felicidade.

Um brinde a ti, beijo <:)


De V.A.D. a 26 de Dezembro de 2007 às 14:28
Olá, Ki :-) Estou em total concordância contigo. As emoções fazem parte da natureza humana e sem elas a vida seria muito menos apetitosa. Neste conto quis, de forma simples, fazer passar essa mensagem.
Embora me veja como alguém que privilegia a racionalidade em detrimento de uma emotividade que nem sempre consigo conter, sei que precisamos de alcançar o equilíbrio adequado entre estas duas facetas.
Agradecendo as tuas palavras, desejo-te uma excelente tarde!

Um beijo... :-)


De Emanuela a 28 de Dezembro de 2007 às 01:03
Fantástico, amigo. Que terrível esta doença chamada emoção. Se para nós já é tantas vezes aflitiva, imagine para seres completamanete racionais.Adorei esta tua maneira tão inusitada de trazer este assunto à baila. O que dizer? Tu te superas a cada dia.
Um beijinho!


De V.A.D. a 29 de Dezembro de 2007 às 01:33
Em primeiro lugar quero agradecer as tuas palavras, sempre amáveis, amiga. Em relação ao conto, pretendi criar a imagem de uma frieza certamente subjacente a uma espécie destituída de sentimentos. Considero que é desejável um equilíbrio entre emotividade e racionalidade. Precisamos da primeira para que nos possamos maravilhar com todos os aspectos bonitos da nossa existência. A segunda é fundamental para a aprendizagem. O ser humano tem sorte em poder contar com estas duas facetas... :-)
Desejo-te uma excelente noite!

Um beijo... :-)

P.S. Espero que o teu natal tenha sido pleno de alegria!


De **** a 29 de Dezembro de 2007 às 00:00
Tenho de confessar que estava em pulgas para voltar a estar em frente a um destes pequenos ecrãs para poder ver como acabava este conto... enfim voltei de férias, regressei à net e posso dizer que não fiquei desiludida.

Poderia voltar a falar nas descrições fantásticas e nos pormenores científicos que me encantam, mas acho que já me estou a tornar demasiado repetitiva... portanto desta vez comento a tua descrição da raça humana: "Aquela raça, jovem e belicosa, havia passado grande parte de sua História num conflito permanente...".
Assustadoramente objectiva e infelizmente correcta. Realmente se nos distanciarmos um pouco vemos que é inegável que somos uma espécie bárbara... os aliens vazem bem em se afastarem.
Quanto às emoções serem uma doença... fazemos muitas asneiras graças a elas, comprova qualquer manual de História. Contudo esses mesmos livros mostrarão que geraram muitos actuos caridosos, mesmo que estes tendam a ser mais pequenos que os destrutivos. Fazemos muitos erros verdadeiramente desumanos quando as afastamos, tornamo-nos frios. Voltando ao início do conto, não seria capaz de abdicar da capacidade de apreciar "espectáculo visual uma grandiosidade em relação à qual aqueles seres pareciam integralmente alheios". Até mais ver prefiro manter o meu sangue quente.

A acrescentar só tenho o facto de ter ficado curiosa com o artefacto que deixaste ficar na bruma... vou ter de me limitar a imaginar o que seria realmente e ficar na eterna dúvida.

Espero que tenhas tido um bom natal
e desculpa o tamanho do comentário...
beijos,

Sophia


De V.A.D. a 29 de Dezembro de 2007 às 02:11
Olá, Sophia :-) Espero que as tuas férias, tal como o teu Natal, tenham sido muitíssimo agradáveis.

Ao longo de toda a História, o Homem, na sua ânsia por poder, glória e fama, não tem sabido evitar os conflitos. Creio que esta espécie de necessidade de se suplantar tem levado a excessos que realmente mancham a grandiosidade da inteligência humana.
A minha abordagem à emotividade foi feita sob o ponto de vista de um narrador, alguém que não tinha interveniência directa no desenrolar da história e a quem quis incutir um certo pendor antagónico em relação à posição da maioria dos leitores. É um truque para realçar o distanciamento, reforçando a ideia de aparente neutralidade. É claro que não não gostaria de ser um indivíduo puramente racional e não acho que as emoções sejam uma patologia de qualquer espécie. Creio sim que devemos tentar um equilíbrio, nem sempre fácil, entre estas duas facetas... :-)

O artefacto... Bem, imagina-o como um gravador, um dispositivo que conseguia registar diversos tipos de informações... Não clarifiquei a natureza do objecto por se me afigurar complicado explicar o funcionamento de algo assim...

Amiga, não há nada a desculpar...! Aliás, só tenho a agradecer esta tua intervenção , bem como a simpatia que sempre tens revelado para comigo!

Desejo que a tua noite possa ser muito, muito agradável!

Um beijo... :-)


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