Quarta-feira, 28 de Novembro de 2007

Aldeia (II)

Descia o trilho empedrado, sulcado pelas passadas de incontáveis pés, erodido pelas inumeráveis chuvas de muitos Invernos e parecia-me estar a avançar sobre uma ruína de ossos esbranquiçados pelo sol de séculos sucessivos. Na margem do ribeiro, por onde a água havia há muito deixado de correr durante todo o ano, ainda se viam as lajes onde os trapos eram esfregados, enquanto as línguas viperinas lavavam roupa suja. Dir-se-ia que o velho casebre estava há muito abandonado, as paredes desnudas mostrando as pedras irregulares cuidadosamente empilhadas numa harmoniosa confusão, escurecidas pela inacabável passagem das estações. O telhado, vergado pelo peso dos anos, fazia lembrar uma tela castanho-escura e irregular, cheia de salpicos amarelados, os líquenes e tufos de erva conquistando aquele território aéreo. Da fuga, encarvoada pela fuligem, soltavam-se rolos de fumo e no ar pairava o agradável cheiro da madeira em combustão. Antecipando as palavras que tão bem conhecia, “pode entrar, a porta ‘tá aberta!”, bati na vidraça do postigo. Um rosto, cheio de rugas e tisnado pela dura vida no campo, abriu-se num sorriso de rara espontaneidade. Entrei e dei-lhe um abraço caloroso. A fumaça, que enchia a casa e a alma do velho, começou de imediato a dissipar-se, escorrendo para a tarde fria através da porta entreaberta.

Imagem: Casebre (www.gulfislandsguide.com/photos-gabriola/images/stonehouse.jpg)

música: This Old House (Neil Young)

publicado por V.A.D. às 02:30
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16 comentários:
De Fisga a 28 de Novembro de 2007 às 10:44
Não faz lembrar os serões para trabalhadores, mas sim os serões na Província. É tão bonito como nostálgico. mas é sobretudo mágico para quem, nasceu, cresceu e viveu, nestes casebres. Obrigado e parabéns. um grande abraço. fisga


De V.A.D. a 29 de Novembro de 2007 às 01:10
Obrigado, amigo, pelas suas palavras sempre gentis. As minhas raízes estão naquele lugar, onde encontro a paz e a serenidade tão necessárias ao equilíbrio que sempre tento alcançar...
Votos de uma excelente noite!

Um abraço.


De A Túlipa a 28 de Novembro de 2007 às 20:02
Tão céptico quanto eu serás então.
Na realidade não se trata de nenhuma. Apenas o nome está relacionado, não poderia chamar-lhe carlota que lembrarseiam da vaca. Assim foi Emily, de Emily Rose, sim, mas não a própria.

A tua mente trabalha a uma velocidade alucinante. Deves ter em ti uma infinidade de contos e uma necessidade ainda maior de encantar toda a gente


De V.A.D. a 29 de Novembro de 2007 às 01:13
O “Exorcismo de Emily Rose” é um filme impressionante. Embora consciente de que existem explicações do foro psiquiátrico para algumas das situações retratadas nele, não evitei alguns arrepios, aquando do seu visionamento.
O que vou escrevendo neste espaço, reflecte muito do que eu sou. Alguns textos não passam de pura ficção, mas neles está contida uma parte do meu entendimento. Outros, como a “Aldeia”, são feitos de memórias esfarrapadas e de lugares reais, que visito sempre que posso. Para te dar um exemplo, o poço do post anterior é o poço da fotografia... :-)
Dá-me uma enorme satisfação saber que vou conseguindo encantar algumas das pessoas que, muito gentilmente, vão passando por aqui. Agradeço-te por seres uma delas!
Desejo-te uma excelente noite!

Um beijo... :-)


De Pérola a 28 de Novembro de 2007 às 20:13
É mais ou menos isso que sinto quando visito as minhas raízes. Uma mistura de conforto, mas também desconforto porque já não é ali o meu lugar.

Gosteie!!! :p

Beijo!


De V.A.D. a 29 de Novembro de 2007 às 01:14
Obrigado, amiga! É sempre motivo de contentamento saber que aquilo que escrevo é do agrado de quem por aqui passa.
As minhas raízes permanecem um lugar de encanto, onde a pressão da vida buliçosa é aliviada, onde me reencontro com as pessoas que me viram crescer e onde também me sinto ainda integrado...
Desejo-te uma noite muito, muito agradável!

Um beijo... :-)


De Emanuela a 29 de Novembro de 2007 às 00:11
Um abraço caloroso é algo capaz de afastar qualquer fantasma, aliviar dores, trazer conforto para a alma...
São maravilhas que os seres humanos deviam praticar mais!
Lindo texto, só fiquei a pensar na generalização das lavadeiras: será que absolutamente todas possuíam línguas ferinas?
Aproveito para te deixar um abraço amigo!


De V.A.D. a 29 de Novembro de 2007 às 01:28
Gestos tão simples como um abraço sentido são mais importantes que muitas palavras...
As recordações, velhas de mais de 30 anos, que guardo das lavadeiras fazem-me crer que haviam poucas excepções. Talvez aproveitassem o lavar da roupa para lavar uma outra roupa, ainda mais suja, ehehehhehe :-))
Obrigado, amiga! Também eu aproveito para te desejar uma excelente noite.

Um beijo... :-)


De teresworld a 29 de Novembro de 2007 às 10:24
Adorei o texto...
E a minha mente viajou no tempo
deslocando-se no espaço, e saltou-e á memória "o abraço caloroso" com que a minha avó me envolvia.

Um beijo

Teres


De V.A.D. a 30 de Novembro de 2007 às 01:16
As memórias agradáveis fazem-nos recuar a um outro tempo, parecendo envolver-nos na magia dos momentos agradáveis e trazendo-nos serenidade.
Agradecendo as suas palavras, aproveito para lhe desejar uma excelente noite.

Um beijo... :-)


De ______ a 29 de Novembro de 2007 às 12:46
Quantas vezes são as coisas simples e gratuitas que nos fazem sentir bem, sorrir e achar que a vida é fascinante.

:)


De V.A.D. a 30 de Novembro de 2007 às 01:15
Creio que, as mais das vezes, é precisamente na percepção dessas pequenas coisas que residem os maiores prazeres...
Votos de uma noite agradabilíssima!

Um beijo... :-)


De MalucaResponsavel a 8 de Dezembro de 2007 às 11:25
eu tnh uma optima relaçao com aldeias... :) dessas em q o frio de Inverno se entrenha por nós a dentro e só apetece estar à lareira nas frias casas de pedra. bj


De V.A.D. a 9 de Dezembro de 2007 às 00:41
Nesses lugares, o frio climatérico contrasta com o calor humano e com a atmosfera criada por uma lareira...
Também me dou bem com aldeias; vivo numa que, embora perto de tudo, está longe da turbamulta da cidade... :-)

Um beijo... :-)


De MalucaResponsavel a 10 de Dezembro de 2007 às 00:58
a serio? mas so csgs pq e perto de tudo, confessa!!!!pois, eu vivo na cidade e até gst da confusao. mas adr as minhas ferias nas aldeias dos meus avos.. :) bj


De V.A.D. a 10 de Dezembro de 2007 às 02:34
Confesso, sim...! :-) Reconheço que viver no campo a 30 minutos da Capital é fantástico. Em qualquer altura pode-se alternar entre a mais completa pasmaceira e o bulício da cidade... :-)

Um beijo grande... :-)



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