“Tacteei o solo, o frio do metal acariciando a ponta do indicador que deslizava sobre a lisura, o toque num dos caracteres gravados no ferro despoletando o mais inconcebível e inesperado espectáculo, a cúpula transformando-se em firmamento, o espaço diante de nós enchendo-se de matéria e energia. Num fascinante jogo de luz, presenciámos o nascimento do sistema solar, o núcleo da nebulosa primeva condensando-se numa proto-estrela, dez discos de acreção formando-se numa rotação de matéria cada vez mais aglomerada, os planetas adquirindo formas definidas. Assistimos, perplexos e silenciosos, às mudanças geológicas operadas em Marte pela passagem de quatro mil milhões de anos reduzidos a poucos minutos de magia visual, a inquestionável voz de um locutor expressando-se numa desconhecida linguagem feita de fonemas agudos acompanhando as imagens holográficas. Eram milhares, os símbolos cinzelados, tantos quantos os episódios da incomensurabilidade de uma história rica em eventos e pródiga em catástrofes. Ao vigésimo primeiro, sentimo-nos no interior de uma nave espacial, ouvimos o tonitruante som dos foguetes químicos, vimos a superfície a afastar-se, percebemos o azul rasgado de nuvens brancas ocupando uma área cada vez maior, o planeta gémeo como objectivo daquela viajem concretizada nas brumas de um passado longínquo, o subcontinente indiano, ainda separado da Ásia, alinhando-se sob a órbita geostacionária, a descida num transbordador levando à Terra um pilar de ferro de elevada pureza, um padrão em tudo símile aos que os navegadores portugueses assestavam nas terras que iam descobrindo…”
V.A.D. em Cidónia
Vídeo: O Nosso Espantoso Sistema Solar (www.youtube.com/watch?v=7gLcxafJjPI)
“Uma vibração profunda, inenarrável e poderosa estremeceu-me as entranhas, devolvendo-me por um infindável instante à vanidade de que cada ser humano devia ser cônscio. Incontáveis luzeiros iluminaram-se no tecto elevado centenas de metros acima de uma superfície surreal, os reflexos metálicos do ferro polido enchendo de uma luz fantasmagórica aquela nave de sonho, qual estranha e admirável catedral consagrada à devoção pela astronomia, as paredes abobadadas incrustadas de estrelas e constelações colocando o humilde observador perante a desconcertante amplitude do Cosmo. Avancei uma centena de passos, o deslumbre exaurindo-me as forças, o peso do portento levando-me a sentar e a descobrir que nem um grão de pó contaminava a pureza de um chão onde glifos em baixo relevo pareciam ter uma história a contar. Movido por uma intuição que se erguia, dissimulada, no fundo da minha mente, verifiquei os dados climatéricos do equipamento multifuncional que trazia preso ao antebraço esquerdo: dezasseis graus de temperatura, meio bar de pressão atmosférica, trinta e cinco porcento de oxigénio e nenhum sinal de gases nocivos. Num impulso incontido, retirei o capacete e as luvas, inspirando profundamente aquele ar tão puro como o que ainda se respira na minha aldeia natal…”
V.A.D. em Cidónia
Imagem: Firmamento (http://antwrp.gsfc.nasa.gov/apod/image/0607/ngc7331_gabany_f.jpg)
“O verdadeiro alcance da descoberta só foi apreendido horas mais tarde, ia já o Sol inclinando-se para oeste, os redemoinhos enchendo de finíssimas partículas de poeira a delicada atmosfera brandamente aquecida, o céu iludindo os sentidos com uma paleta de cores quentes, pretensa negação do glacial clima marciano, o amarelo vivo da abóbada demudando-se em tons mais encarniçados até o vermelho vivo do sangue confundir o horizonte. Seguindo os planos previamente estabelecidos, havíamos investigado todo o perímetro da Face, os olhos bem abertos e a atenção redobrada na busca de novos vestígios alienígenas. Precisamente no lado oposto, uma abertura análoga afigurava-se-nos tentadora, insinuando-se num convite mudo cuja aceitação era apenas prorrogada, a ânsia de penetrar na escuridão contendendo com todos e quaisquer programas anteriormente elaborados. A necessidade de respostas impôs-se por fim, regressados que éramos ao ponto de partida. Verificámos as lanternas e avançámos, contendo a pressa e o frenesi instaurado em cada um de nós, as minhas palavras recomendando serenidade e cautela. Transpus o umbral e, nos inefáveis minutos que se seguiram, séculos de fantasia e lenda condensaram-se num cenário tão majestoso quanto real…”
V.A.D. em Cidónia
Imagem: Paisagem Marciana (www.mactonnies.com/firstcolor.jpg)
“A fabulosa estrutura agigantava-se, a idêntica aparência de basalto vulcânico com elevado teor de óxidos de ferro proporcionando o característico e omnipresente vermelho, o cerro projectando a sua sombra sobre o veículo que se aproximava velozmente, o contorno perfilado a oeste revelando lineamentos antropomórficos sobre o céu amarelo-acastanhado. O Sol achava-se uma dezena de graus acima do horizonte, ainda longe do zénite, quando saltámos ansiosamente para o solo, o polvilho ocre assentando sobre as botas, os olhos visando de imediato a manifesta anormalidade que se nos afigurou como a mais incontestável das provas. Na reentrância de uma escarpa, escondidos dos olhos electrónicos que iam povoando o firmamento marciano, dois pilares cilíndricos de um negro metálico flanqueavam uma garganta rectangular que se abria para a escuridão das entranhas da Face. Atordoados, permanecemos estáticos por um instante eterno, a mudez tomando-nos de assaltando, tão incontrolável quanto a perplexidade que nos deixava boquiabertos. Quebrei o silêncio, o feitiço desvaneceu-se dando lugar ao alinho, a premência científica determinando o uso do espectrómetro para a análise dos artefactos. Noventa e oito porcento de ferro e uma parte em cada cem de fósforo conferindo-lhes uma singular resistência à corrosão. Senti-me esmagado pela coincidência. Em Nova Deli, um pilar de características similares havia sido, ao longo de séculos, objecto das mais diversas especulações…”
V.A.D. em Cidónia
Imagem: Pilar de Deli (http://static.flickr.com/32/65918246_164b4b85f5_b.jpg)
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