“Mais do que a cascata dourada que me caía sobre os ombros e que a candura da pele que os cobria, nesta “Pérola do Mediterrâneo” onde as tranças de reflexos lápis-lazúli das sacerdotisas do templo se enleavam nas alvas madeixas de frágil seda dos anciãos ou na tisnada musculatura dos escravos de negra carapinha, o que mais fazia virar os rostos de mil etnias em minha direcção era a cadência do andar. Ao lado daquele homem, quase um estranho, serpenteava em movimentos precisos de dançarina por entre a multidão, num passo mais decidido, célere, mais largo do que o apropriado uma dama de bem. Ao ritmo do fluir das pregas da túnica cuja bainha ia flutuando livremente, subindo um pouco além da decência, fluíam as conversas plenas de trivialidades, suplantando a necessidade do mais rigoroso secretismo, a suprema urgência dos assuntos de que fora feita guardiã. A ele contei-lhe que viera de Rhodes, cidade cuja grandeza havia decaído há séculos com o Colosso, tendo trocado há mais anos do que me lembrava o mar Báltico pelo Mediterrâneo. A mim confiou-me qual o trabalho que lhe consumia as horas por entre as numerosas estantes também mandadas erguer por Ptolomeu, sem saber que o havia seguido de perto por sete sóis. Preparava-me para virar a astral, quando me segurou veementemente um pulso, misturando-se o toque frio da prata e o rugoso do âmbar da pulseira com o quente dos seus dedos macios de escriba. Disse-me que o ocaso passara, prometeu-me que iríamos à Biblioteca na aurora seguinte, convidou-me para partilhar com ele a refeição naquela noite de lua nova. Consenti e virei então as costas à mais brilhante estrela que já subira ao firmamento egípcio, Souped, a chegada de Ísis anunciada por uma resplandecência que era contudo insuficiente para distinguir tom de cabelo ou pele e muito menos para iluminar os mistérios enrolados na vareta de marfim que transportava...”
Sophia
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Freyja e Hiparco (http://cache04.stormap.sapo.pt/fotostore01/fotos//ec/01/c4/1835927_HCsnC.jpeg)
“Strangers in the night, two lonely people
We were strangers in the night
Up to the moment
When we said our first hello.”
“Os meus olhos perscrutavam a multidão ainda fervilhante de actividade, homens a carregar e a descarregar, a consertar e a preparar, a levar e a trazer, condutores de burros acarretando a lenha que se transformaria no fogo luminoso, um chicote a precipitar-se sobre as espaldas de um escravo que laborava com a lentidão indesejada pelo amo, o rumor cacofónico rolando ao meu encontro numa mescla de conversas e risos, de gritos e regateios, de relinchos e de bater de cascos naquele chão que Alexandre mandara empedrar. Por todo o lado se viam mercadores, as suas roupas ostentadoras de riqueza, as cores vibrantes contrastando com a tez escurecida pelo sol dos que apenas usavam tangas ou ofuscando os cafetãs desbotados e remendados dos marinheiros e caceteiros das docas. Avultando-se, esbelta e alva, os cabelos de um inaudito amarelo doirado, a estrangeira estendia um braço desnudo em minha direcção, num aceno de uma candura incomparável. Inexplicavelmente, uma espécie de hipnose tomou-me por completo, os ruídos silenciando-se misteriosamente, a minha vista fixando-se na profundidade azul daqueles lúzios impossíveis. Expulsando da mente o abalo, dirigi-me a ela, os passos inseguros disfarçados pelo cumprimento que lhe dirigi em grego, uma vénia correspondida pelo curvar airoso do seu corpo jovem, a clareza e perfeição da sua voz anunciando-a como Freyja, irmã de Fricka, cunhada de Wotan e princesa da Suécia, a ausência de qualquer indício de sotaque revelando uma extraordinária erudição. Caminhámos ao longo do molhe, ela referindo-se às suas indagações sobre a Biblioteca e sobre o trabalho desenvolvido por mim e pelos meus antecessores, eu questionando-a sobre as indubitáveis peripécias de tão longa viagem…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Eunostos (http://cache02.stormap.sapo.pt/fotostore01/fotos//e8/9b/af/1833813_0Lw2Y.jpeg)
“Uma abafada lufada de ar quente arrancou-a do estado de letargia que a ociosa observação das sôfregas movimentações da tripulação dum dahabeeyah que atravessava a primeira comporta do Heptaestádio - com a alvura das velas recolhida num emaranhado de cordas e roldanas - a mergulhara. Os indeléveis traços dum saudosismo inusitado das robustas embarcações que povoam os mares tempestuosos, frios, nórdicos duma primeira infância longínqua dissiparam-se no clima fervilhante do porto. Misturavam-se as gentes numa confusão de linhos, algodões e napa, hibridavam-se os cheiros de cada canto do mundo que se prendiam à pele dos transeuntes, fundiam-se todos os idiomas conhecidos mais os que eram criados ali mesmo na marginal da mais povoada cidade do mundo. Ela, num esforço inaudito para não se dispersar, procurava a figura esguia do brilhante homem letrado cujo nome – Hiparco – havia lido até à exaustão, patente num maravilhoso conjunto de prometedoras obras que a haviam acompanhado nas últimas luas. Tentava ainda a custo repudiar o sentimento de admiração que a poderia distrair da tarefa da qual havia sido incumbida, quando finalmente o viu, de olhos aéreos perscrutando a multidão.
Arranjou o manto deixando propositadamente uma das alças escorregar-lhe pelo ombro, desnudando o início dum colo prometedoramente alvo, apertou entre os dedos finos o rolo de papiro que sabia valer mais que a sua vida, sentindo na palma a sua textura reconfortantemente rugosa, e esticou outro braço no sentido do ombro do homem cuja nuca povoada de caracóis negros a fitava, desprendo-se do frágil gancho, numa outra lufada, uma madeixa quase da cor do sol poente e da chama que tomara o seu lugar no Farol de Alexandria...”
Sophia
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Alexandria (http://cache01.stormap.sapo.pt/fotostore02/fotos//15/00/8d/1830631_BmZYl.bmp)
Prefácio
Foi há pouco mais de um ano que entrei em contacto com este fabuloso mundo da blogoesfera, que me tem surpreendido de forma muito positiva, seja pela aprazibilidade de alguns lugares que vou descobrindo e visitando com regularidade, seja pela extraordinária qualidade de alguns textos. Os comentários fazem dos blogs lugares abertos, trazendo uma enorme riqueza e complementaridade àquilo que se vai escrevendo. Mas, pode-se ir mais além, as parcerias representando experiências deveras interessantes. Nesse sentido, enderecei um convite à Sophia do Flip Side, para que escrevêssemos um conto. Espero que o resultado seja do agrado de quem gentilmente nos lê…
“O sol ia baixo, a oeste, descendo sobre os mastros despidos dos navios de grande calado que enchiam o Eunostos de marinheiros e de fazendas de toda a sorte, as riquezas do mundo conhecido sendo comercializadas numa vozearia que enchia de vida um final de dia excessivamente quente, o ar pesado de humidade e fumo causando aquela ténue mas indissipável impressão de desconforto de todas as mediterrânicas tardes estivais. À minha frente, separando o porto mercantil dos arsenais e das guarnições militares, o Heptaestádio estendia-se mar adentro, ligando o continente à ilha onde, havia mais de um século, tinha sido erguida a impressionante obra de Sóstrato de Cnido a mando de Ptolomeu, trezentos côvados de altura, sobre a base quadrada de erguendo-se a esbelta torre octogonal, no topo levantando-se um cilindro para uma cúpula aberta onde o fogo que iluminava o farol era mantido noite e dia. Lá no alto, a magnífica estátua de Poseidon velava, infatigável, pela tranquilidade das águas de um azul profundo, o mármore reluzente captando as tonalidades do crepúsculo. Estuguei o passo, o papiro entregue pelo meu secretário referindo o pôr-do-sol como a hora do encontro, a misteriosa assinatura revelando um nome feminino definitivamente estrangeiro, a premência do convite deixando-me a arder de curiosidade…”
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Farol de Alexandria (www.tresd1.com.br/Contest/c07-civilizacoes/Pedro-Miguel-Varanda.jpg)
“…é algo de infinitamente profundo e intrínseco, a natureza precisando de uma medida que quantifique a negação da própria eternidade...”
V.A.D. (s)em Tempo
Video: The Flow of Time – In a Cradle (Rentrer en Soi) (www.youtube.com/watch?v=eaKP9QbDeGM)
“O crepúsculo fora singularmente belo, o céu abaixando-se sobre o deserto como um manto de fino linho, a tingidura feita de tonalidades quentes contrastando com a imprevista frescura da esplanada, os mezze saboreados com a impossível mas espantosa sensação de deleite, o palato sendo estimulado pela deliciosa combinação de sabores, os distintos ingredientesrenovando a experiência de uma gastronomia tão dissemelhante. Mashi acompanhado de zythum gelada, a noite trazendo o silêncio das horas de contemplação, a minha mente deixando-se levar a um outro tempo, a um lugar abastado na fímbria da aridez, a erosão dos séculos que passam indeléveis não conseguindo apagar as marcas de esplendor de uma civilização antiga e fantástica, medido pelas faraónicas obras e pela riqueza cultural e material. Maravilho-me com os feitos de engenharia, fico assombrado pela organização e logística necessárias à construção de tão colossais monumentos, templos e pirâmides representando o auge da sapiência ancestral. Interrogo-me sobre que fabulosos conhecimentos se terão perdido, a geometria e a astronomia precisando de um longo período de anactesia para o regresso ao esplendor daqueles tempos. Fecho os olhos e vejo-me em Karnak, às margens do Nilo, no Alto Egipto, as imagens formando-se expressivas e plenas de singular realismo, a clepsidra parecendo estar ainda inteira de água, o tempo tendo sido parado só para que eu pudesse admirar a magnificência de Ipet-sut…”
V.A.D. em Clepsidra
Imagem:
O tempo é uma misteriosa entidade, da qual temos apenas uma rudimentar e vaga concepção. É infinitamente mais do que os incomplexos resultados do seu constante fluir, é decididamente algo muito mais profundo que a concepção que nos é proporcionada pelo senso comum ou pela natureza das leis biológicas. Integra o próprio tecido básico do Universo onde vivemos, é irmão gémeo do espaço e nasceu no instante primevo em que, de uma singularidade, dimanou tudo o que existe, matéria e energia libertando-se do confinamento quântico numa inflação desmesurada. Influencia a nossa vida sob todos os aspectos, desde os mais simples e moderadamente controláveis até aos que estão completamente fora da nossa autoridade, sendo a lenta mas contínua caminhada na direcção da velhice ou a inexorável passagem dos dias exemplos dessa nossa inabilidade para o manipular. É subjectivo e desigual, a velocidade agindo como causa de uma estranha variabilidade, aquilo que fazemos dando-nos a impressão de que ele se escoa de forma inversamente proporcional ao nosso apaziguamento. Talvez escorra pelos interstícios dos grânulos espaciais como areia numa ampulheta, mas não é eterno. A eternidade é mais estranha: é o lugar onde o tempo liminarmente cessou…
Imagem: Tempo (http://sprott.physics.wisc.edu/fractals/collect/2000/time%2520out.jpg)
“Olhei demoradamente através da translucidez do vidro, a janela do hotel virando-se para o deserto que se assenhoreara da vastidão, quilómetros e quilómetros esvaziados de vida assemelhando-se à inanidade de mim mesmo. As inumeráveis dunas, enchendo a paisagem fastidiosa do meu descontentamento, elevavam-se como pirâmides caoticamente desfeitas, os dias sucedendo-se na cadência lenta das alvoradas tépidas e das tardes infernais, o trabalho bem pago progredindo de acordo com o previsto, a chuva ausente havia meses levando-me, pelo crepúsculo, ao delírio onírico de rios transbordantes e de gotas geladas, caindo do céu de Março em manhãs húmidas e cinzentas de latitudes médias. Virei o meu olhar para a imagem impressa na brochura, a quimérica clepsidra de Karnak transportando-me até aos dias de glória e prosperidade daquela terra agora tão diferente, Amen-hotep III governando aquele país antigo, o nono faraó da décima oitava dinastia patrocinando a contagem de algo tão precioso quanto a água, a vã tentativa de o dominar o tempo levando à construção do dispositivo primevo, tão distante dos relógios de césio quanto apartada de mim estava a felicidade. Mas o tempo fluía indómito e imparável, o líquido cristalino vertido pelo orifício de uma clepsidra imaginada declarando o avizinhar do momento em que retornaria a casa…”
V.A.D. em Clepsidra
Imagem: Clepsidra de Karnak (www.arqueoegipto.net/articulos/egipto_tematico/calendario.htm)
Ao fim da noite, sou silêncio e luz
Vento siroco, radiosa alvorada
Sou princípio e fim da estrada
Sou verbo que encanta e seduz
Audácia firme ou vã bravata
Rio de águas calmas, rugido de catarata
Intenso brilho, ténue reflexo de luar
Sou ilusão etérea, profundo mar
Sou poção que rejuvenesce ou mata
Símbolo cinzelado, audível fonema
Enigma complexo, solução de problema
Física de partículas, matemática pura
Sou esquisso de alguém, surreal pintura
Sou certeza absoluta ou irresolúvel dilema
Viagem sem revés, aventura perigosa
Fleuma indizível e agitação buliçosa
Sopro de vida, infalibilidade da morte
Sou azar profundo, amplíssima sorte
Sou vibração de corda, melopeia silenciosa
Humm…
Dia soalheiro, existência maravilhosa!
Imagem: Nascer do Sol (http://apod.nasa.gov/apod/image/sunrise_apollo.gif)
“A noite fora espantosamente fria, um érebo gelado e seco assenhoreando-se das horas sem luz, as temperaturas atingindo valores inconcebivelmente baixos, os ventos aninhando-se numa hibernação transitória até a luz os trazer de novo à actividade. O amanhecer revelou-se desusadamente alvo, a neve carbónica cobrindo fendas e manchando a rubidez da superfície com reflexos extraordinários, coroando de brilho a última manhã marciana. Trinta dias de puro êxtase e de laboriosa pesquisa haviam-se escoado por entre fascínio e cognição, a expedição terminando abruptamente, as ordens vindas da Terra representando uma peremptória antecipação do regresso. Registadas nas câmaras de vídeo e gravadas nas nossas memórias, estavam demasiadas respostas a outras tantas questões. Desde que havíamos penetrado nos segredos da Face, as comunicações passaram a ser encriptadas e estritamente de voz. A nenhum dado foi permitida a transmissão, nenhuma imagem alcançando as antenas apontadas a Marte, o sigilo absoluto acautelando o elevadíssimo investimento das seis nações envolvidas. Devo referir que sempre foi feroz, o meu antagonismo a esta decisão. Creio na verdade e na transparência, o reconhecimento de que Lowell havia sido um visionário afigurando-se-me a atitude apropriada, a consideração de que Vishnu nascera no planeta vermelho parecendo-me prenhe de razoabilidade... Sim, porque eu estive lá e vi…!
Epílogo
A viagem de retorno arrastou-se, longa e sofrida, as recordações da incrível peripécia insinuando-se, vívidas, nos sonhos serenamente inquietos, as emoções resultantes de uma experiência única na história da humanidade anunciando-se nas olheiras dimanantes de uma ascese científica que podia ter mudado definitivamente o futuro. Fomos recebidos como heróis, aclamados como pioneiros e, contudo, quase decorrida uma década, o secretismo continua a negar o esclarecimento, cerceando o avanço. Ainda que forçado a esconder-me atrás de um pseudónimo e de um I.P. flutuante, decidi levantar a ponta do véu.”
V.A.D. em Cidónia
Vídeo: Estruturas Artificiais em Marte (www.youtube.com/watch?v=Di85p5vfo0k&feature=related)
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