Estamos vestidos de importância; nos pulsos o ouro eterno da vaidade e na cabeça a coroa do egocentrismo. Mas, na verdade caminhamos nus, de pés descalços sobre a poeira dos nossos antepassados, olhando o futuro como se os ventos do tempo soprassem numa só direcção. Esquecemo-nos de perscrutar o chão em busca do presente e aquilo que passou pouco mais é para nós que um sussurro inaudível ou uma imagem sem contornos definidos. Das gerações que nos antecederam, só sabemos o que a história conta; a individualidade dos milhares dilui-se inexoravelmente no grande caldeirão das épocas e o pensamento daqueles que nos antecederam é tão difuso como a matéria nos incomensuráveis oceanos do espaço profundo. Sombras à beira das fossas abissais do mais completo esquecimento. Meras sombras que, de tão indistintas, nem damos por elas. Ossos sem nome, enterrados num tempo que nada parece ter para nos dizer…
Hoje, tive a singular oportunidade de ver uma centenária e muito danificada fotografia do meu bisavô…
Imagem : Bisavô
Àquela hora metida madrugada adentro, a marginal fervilhava de automóveis, os seus ocupantes em perpétua deslocação num basto tempo de música, bebida e amigos. As curvas, a estreiteza das faixas de rodagem e os semáforos, daqueles que se ruborizam como que envergonhados pelas pressas, obrigavam a que a velocidade fosse reduzida. Tanto melhor. Assim podia observar os contornos esfumados de uma paisagem envolta pelo véu brumoso daquela agradável e morna noite de Outono. Em algumas enseadas lá em baixo, as ondas esmagavam-se de encontro à falésia, a luz dos candeeiros estilhaçando-se numa miríade de pontos, para se elevar até embeber o ar com um brilho amarelado e fantasmagórico. Abri os vidros e deixei que o cheiro mágico da maresia preenchesse todos os espaços do habitáculo. Deixei que penetrasse os meus pulmões e me purificasse a mente. Há algo de extraordinário no aroma a sal e algas; talvez faça vir ao de cima memórias de épocas remotas, gravadas profunda e indistintamente nos genes, que me asseguram que o mar foi o útero no qual toda a vida teve origem…
Imagem: Marginal
Música: Rádio Marginal (http://www.marginal.fm/)
Estava ali sentado ao sol, de olhos abertos e mente errante, recostado ao centenário e frondoso carvalho, aproveitando o ameno calor daquela manhã de Outono. No vale abaixo, a névoa ainda não se dissipara por completo, dando à paisagem um aspecto fantasmagoricamente esbatido, os detalhes diluídos como numa aguarela. Olhei para o terreno à minha frente, despido do trigo dourado que ainda algumas semanas antes ondulava ao sabor da brisa morna das tardes de Agosto. Retrocedi até outros anos, já distantes no tempo, em que as cepas, carregadas de grandes e doces cachos de diagalves, enchiam de cor toda aquela encosta de suave inclinação. Pareceu-me ouvir a vozearia dos vindimadores e vi-me ainda miúdo, a correr pelo carreiro acima com um cacho surripiado numa mão e um camião de brincar noutra, seguido de perto pelos companheiros de brincadeiras, para me ir sentar no mesmo banco improvisado onde me encontrava. Sorri… Há coisas que parecem nunca mudar. Definitivamente, as memórias agradáveis permanecem…
Imagem: Diagalves (www.fantasmablu.com/MVC-218S.JPG)
“Venho do nada. Provavelmente sou a vaga materialização de um devaneio de alguém, um mero átomo, indistinto e intangível, no vasto universo da existência. No entanto, creio ser capaz de pensar: finas e quase imperceptíveis estruturas electroquímicas parecem ser erguidas no âmago do meu cérebro – talvez ele próprio um delírio ilusório – para serem arrasadas e de imediato substituídas por outras, numa contínua e incessante renovação. Não passo de um evanescente e descolorido ponto numa descomunal tela, pintada ao longo de incomensuráveis éons; os meus gritos são tão inaudíveis quão fúteis aparentam ser os meus actos. E, apesar disso, não deixo de agir, nem retenho as palavras que me parecem ter de ser ditas. Vejo-me enclausurado num vazio destituído de qualquer sentido. Contudo, suponho sentir e pareço ter a aptidão de me emocionar.
Retornarei ao nada e serei esquecido, quando os profundos golfos do tempo absorverem as résteas da memória e os ecos da minha presença se esbaterem. Irei despido de tudo, até de espírito. Cessarei de existir… Mas, enquanto isso não suceder, estarei por aqui, fantasia ou realidade, sonho ou vigília…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Vazio (http://files.v2.nl/portal/lab/projects/void/void_01.jpg)
“Deitado sobre a erva macia, debaixo da luz ténue das estrelas daquele céu límpido e seco, sentia-me tranquilo, pela primeira vez em muitos anos. Talvez fosse a escuridão silenciosa, a minha melhor amiga…Nada daquilo que me havia atormentado parecia fazer sentido então, pois a determinação tinha tomado conta de mim, qual mãe confiante encorajando um filho com palavras de incentivo. Conduzi os meus pensamentos até aos dias soalheiros da minha infância, cheios de brincadeiras e de jogos, preenchidos pelas maravilhosas aventuras de quem tem um mundo inteiro para descobrir. A minha pátria era esse admirável Universo, onde cada enigma resolvido conduzia a um novo mistério, onde cada obstáculo, aparentemente intransponível, acabava por ser derrubado para que logo na minha frente se erguesse outro, ilusoriamente insuperável. Na verdade, aqueles tempos de constante aprendizagem e adaptação, já tão distantes, pouco diferiam da situação em que me via envolvido. A atitude perante a vida, a maneira como encararia os desafios e a confiança que iria depositar nas minhas capacidades, teriam de ser as mesmas que havia experimentado nos anos da minha meninice. Afinal, a minha pátria é a mesma: continuo a sentir-me uma criança…”
V.A.D. em Algures.
“Um som cavo e gutural, um rosnido alienígena de pôr os cabelos em pé e os nervos em franja, continuava a sair por entre os alvos e afiados dentes da enorme criatura de aspecto felino. A atitude agressiva era prenúncio de um ataque eminente, e eu tinha de fazer algo, e bem depressa. Precisava de confrontar os meus medos, em vez de fugir deles. Olhei para a mochila, a um ou dois metros de distância; a solução para o meu problema encontrava-se no seu interior, mas era-me impossível alcançá-la sem que me movesse, e parecia-me que qualquer acção da minha parte iria desencadear a acometida. Permaneci no mais absoluto silêncio enquanto tacteava o frio solo de pedra, procurando a garrafa de água de que momentos antes me tinha servido, para matar a sede. Assim que a encontrei, delineei mentalmente um plano louco e improvável, mas que talvez representasse a minha única hipótese de sair dali com vida. Arremessei o objecto com todo o meu ímpeto e rolei sobre mim próprio, agarrei a mochila, que felizmente estava aberta, e peguei na arma carregada e pronta a disparar. Lembro-me de premir o gatilho e de ouvir o estampido seco do disparo, enquanto o vulto negro da fera voava na minha direcção…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Medos
“A ferocidade do animal encheu-me de medo. Fiquei paralisado, sem saber sequer o que pensar, e todos os músculos do meu corpo se retesaram, accionados instintivamente pela parte mais profunda e antiga do meu cérebro. A sua aparição inesperada atordoou-me e imediatamente recuei no tempo, até à minha meninice. O subconsciente é atemporal: nele não há uma fronteira bem delimitada entre o passado e o presente. Vi-me, pequeno e indefeso, no pátio da minha vizinha; senti ali o terror e a dor excruciante da mordedura daquele enorme cão de pelagem negra, os dentes aguçados a enterrarem-se-me na carne, o puxão a dilacerar os tecidos, os olhos malévolos da besta a fitarem-me, o sangue a jorrar em grandes golfadas, a perna hirta e seriamente lesada… Há coisas que deixam marcas, quer físicas, quer psicológicas e, embora o corpo possa recuperar, a mente guarda-as a um canto, prontas para nos atormentar e encher de suores frios. Lutei para retomar as rédeas dos meus pensamentos; não me podia deixar apanhar daquela forma, sem que pelo menos tentasse resistir ou fugir…”
V.A.D. em Algures.
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