
“A nave ia derivando num voo curvilíneo e sem rumo aparente, os impulsores bocejando frios e silenciosos no vazio, os sistemas de suporte de vida mantendo os parâmetros necessários à protecção do solitário tripulante que jazia em animação suspensa no interior de um envoltório hermético. A sua pele desnuda achava-se pejada de sensores ligados à interface cibernética, o cérebro artificial gerindo os cada vez mais parcos recursos, numa maquinal obediência aos programas habilmente desenvolvidos séculos atrás. A cada trinta minutos, o músculo cardíaco pulsava para irrigar de sangue oxigenado os tecidos do corpo arrefecido, a necrose sendo adiada por mais um breve intervalo de um tempo que se escoava irremediavelmente por entre o total alheamento da mente destituída de sonhos, a inconsciência mantendo-o afastado da terrível incerteza do que havia por vir. Tinha procurado, em vão, sinais de que a sua espécie pudesse ter encontrado forma de resistir à catástrofe. Restara-lhe a esperança de que pelo menos alguns o tivessem feito, a estrela de classificação espectral G2V a que chamavam Nanahuatl sendo o objectivo provável, a existência confirmada de uma sistema planetário e os pouco mais de oito anos-luz de distância fazendo dela um destino promissor. Antes de cruzar a órbita de Lalande C, marcara na mesa de navegação a trajectória elíptica até ao bordo interno do braço de Orion; nove décadas iriam suceder-se como se apenas um mês viesse a decorrer, o envelhecimento não passando de um conceito falho de invariabilidade …”
V.A.D. em Tarde Demais
De
**** a 13 de Maio de 2008 às 19:15
"A nave ia derivando num voo curvilíneo e sem rumo aparente, os impulsores bocejando frios e silenciosos no vazio" - parafraseando a tua resposta ao meu último comentário (que curiosamente é uma expressão que utilizava muito com um amigp), só digo que tenho "saudades desse futuro"... 
Não no sentido do desaparecimento duma espécie, mas por esse voo que imagino sob o fundo astral de inimaginável beleza.
Quanto ao estado de “necrose” confesso que me mete um pouco de confusão manter tanto tempo a inacção... estamos de tal forma condicionados ao movimento, estando todo o universo em constante mobilidade, de tal modo que só um abrandamento deste género seria estranho. – “... each time we stop / We fall”
E, no entanto, acho que estava a precisar duma semana dessa tua terapia... 
Gostei da expressão final: "o envelhecimento não passando de um conceito falho de invariabilidade "... uma forma fantástica de expor uma hipótese deveras interessante de reflectir.
Beijos
E boa noite longe desse estado letárgico
sophia 
De
V.A.D. a 14 de Maio de 2008 às 02:41
É recorrente em mim, essa visão do negrume espacial pontilhado aqui e ali pelas estrelas, a sensação de aceleração intensa seguida de imponderabilidade (algo que já tive oportunidade de experimentar) sendo usada para a construção da ideia que conduz ao relato de um voo assim... Imagino-me muitas vezes não dentro de um avião, mas numa nave, rumo às estrelas... :-)
O abrandamento do metabolismo é algo que existe naturalmente na natureza, algumas espécies tendo sido dotadas dessa extraordinária capacidade de iludir o próprio tempo, numa reacção a condições climatéricas extremas. Experiências têm sido feitas, demonstrando que a animação suspensa pode ser induzida artificialmente em alguns mamíferos. Quem sabe se não estamos a um passo de poder encetar viagens longas, cruzando o vazio nesse estado ambíguo, "o envelhecimento não passando de um conceito falho de invariabilidade"... :-)
Agradecendo as tuas gentis palavras, também eu te desejo uma magnífica e repousante noite, amiga!
Um beijo e um enormeeeeeeeeee sorriso... :-)
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