Domingo, 13 de Abril de 2008

Sol Vermelho (III)

“A recordação das caras de quem amava perpassava-me pela mente, a nostalgia de tempos e lugares sabidos instilando-se dolorosa no córtex das emoções, o pontual desalento indignado de me saber perdido provocando aquela reacção. Os dedos ainda entorpecidos, a que me principiara a habituar, cerraram-se instintivamente, enquanto as pálpebras se fechavam, o ar asséptico sendo inalado profundamente num acto consciente. Resultava sempre. Resultara agora, a calma expectante regressando de imediato pelo anseio racional de iludir a desesperança em que me não podia deixar cair. Lá fora, a aurora dava lugar ao dia, a luz avermelhada crescendo de intensidade a cada minuto, deixando que as sombras se desvanecessem para que os pormenores daquele panorama alienígena se intensificassem. A vegetação rasteira e esparsa tinha algo de familiar, uma ou outra flor garrida contrastando com a predominância azulada de arbustos semelhantes a árvores enfezadas, enquanto à minha direita, mesmo no limite do raio de visão, construções soberbamente elevadas pareciam varar o céu sem nuvens, como arranha-céus numa qualquer grande cidade da Terra. Tantas eram as perguntas que me cruzavam o espírito, e tão arredia me parecia a perspectiva de obter respostas, a comunicação com os estranhos fazendo-se apenas por gestos, os fonemas trocados sendo-nos completamente ininteligíveis, os símbolos que haviam surgido numa das telas revelando-se-me indecifráveis, a pasigrafia não passando de um conceito isento de resultados.

Atrás de mim, o som distintivo da porta deslizante anunciou a chegada de alguém. Virei-me tão depressa quanto possível e apercebi-me da concentração estampada na face pálida, imberbe e oval da criatura obviamente feminina que acabara de entrar. Lágrimas de um contentamento incontido brotaram dos olhos que tomara por empréstimo quando, inesperadamente, ela se me dirigiu, a sua voz suave arrastando-se num sotaque carregado:

- Bom dia! Sou Fen’dah, a linguista…

V.A.D. em Sol Vermelho

Imagem: Arranha-Céus (original em www.mediaarchitecture.org/wp-content/uploads/2006/07/TurningTorso11.jpg) 


publicado por V.A.D. às 03:00
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8 comentários:
De V.A.D. a 13 de Abril de 2008 às 22:37
Sei que nem sempre dispomos do tempo que queríamos ter, havendo coisas que têm de ser prorrogadas. Amiga, as tuas visitas, mesmo apressadas, são sempre motivo de enorme satisfação.
O conto é resultado de uma ideia que se vinha insinuando há já algum tempo. Espero que se possa continuar a revelar interessante... :-)

Agradecendo as tuas palavras, desejo-te uma óptima noite e uma magnífica semana!

Um beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)


De Emanuela a 17 de Abril de 2008 às 00:33
"Os dedos ainda entorpecidos, a que me principiara a habituar, cerraram-se instintivamente, enquanto as pálpebras se fechavam, o ar asséptico sendo inalado profundamente num acto consciente. Resultava sempre. Resultara agora, a calma expectante regressando de imediato..."
Também eu fiz o teste e realmente provoca um ligeiro relaxamento da mente. Agradável!
Fico a imaginar o contentamento de qualquer ser, que sentindo-se completamente fora do seu "habitat natural", de repente ouve ao menos palavras que lhe são familiares...


De V.A.D. a 17 de Abril de 2008 às 01:17
É fantástico, com o poder calmante de uma respiração controlada conscientemente. Conheço pouco das técnicas milenares, mas aprecio os resultados das experiências que vou efectuando... :-)

Existindo um fosso comunicacional e cultural pronunciado, mesmo que em circunstâncias menos drásticas, a sensação de uma profunda solidão apossa-se de quem se sente apartado de tudo o que lhe é familiar. Ouvir a própria língua é motivo de uma alegria imensa... :-)

Um beijo e um enormeeeeeeeee sorriso... :-)


De Emanuela a 17 de Abril de 2008 às 01:42
Na verdade, só a diferença de cultura já traz lapsos na comunicação e gera um certo desconforto,alguma solidão. Percebe-se claramente isto, quando se está há muito tempo fora da sua cidade natal, por exemplo e encontra um conterrâneo. A alegria que se experimenta nestes momentos é enorme. Por isto mesmo me apeguei tanto a esta parte do texto, pois posso imaginar a solidão de uma pessoa isolada num mundo tão diverso...


De V.A.D. a 17 de Abril de 2008 às 02:05
Amiga, tenho experimentado a sensação de estar num país estrangeiro, em que a própria língua, embora possa ser entendida e falada, não deixa de ser estranha, na medida em que não é a nossa língua materna. Nesses casos, tal como no caso que referiste, sente-se bem essa alegria desmesurada de ouvir uma simples palavra no nosso idioma... :-)

Um beijo e um enormeeeeeeeeeee sorriso... :-)


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