“A missão, solitária e corriqueira, aprestava-se a chegar ao término, a velocidade orbital de mach vinte e cinco principiando a ser reduzida pelo atrito da alta atmosfera, a rápida desaceleração fazendo-se sentir em cada músculo já desacostumado do peso, o rasto do ar tornado incandescente inundando de uma intensa luz alaranjada a carlinga da pequena nave, a temperatura nos painéis cerâmicos do revestimento externo atingindo vários milhares de graus, o elevado ângulo de ataque impedindo-me de vislumbrar o continente europeu tingido pelo negrume da noite e o artefacto contra o qual o acaso quis que desse o embate. Ao violento estremecimento sucedeu-se o inferno das chamas, a serenidade atenta rasgando-se na violenta aflição de um mar de fogo que carcomia o corpo e o espírito em dentadas de padecimento, a perda de consciência sobrevindo apaziguadora, antecipando uma morte que se me afigurara indeclinável. Minutos ou séculos depois achei-me naquele estado: um ser vivente exonerado do seu próprio cadáver numa grata negação da ordem natural das coisas, a natureza humana residindo numa compleição desconhecida.
Sacudi as memórias, fixando a minha atenção naquela paisagem estranha, as águas de um oceano aparentemente morto espraiando-se numa cataléptica imobilidade, apenas aquilo que podiam ser leves sopros de vento encapelando aqui e ali a superfície escura das águas onde o vermelho da radiação se espelhava como sangue derramado…”
V.A.D. em Sol Vermelho
Imagem: Reentrada (www.goingfaster.com/icarus/reentry2.jpg)
De Café com Natas a 12 de Abril de 2008 às 22:28
Sentindo de novo aquela "aflitiva noção" de me encontrar algures no espaço e totalmente fora de mim.
Engraçado, é essa a visão que eu tenho do post mortem: "um ser vivente exonerado do seu próprio cadáver numa grata negação da ordem natural das coisas"...
Ai que me arrepiei toda com estes raios solares
Beijinho e bom fim-de-semana
P.S. Ô de Sain Migué-le
De
V.A.D. a 13 de Abril de 2008 às 03:13
Fico contentíssimo por saber que o conto consegue transmitir sensações, amiga.
Sabes, sendo um ateu convicto, não penso muito no post mortem; na minha concepção, a morte representa mesmo o término. Talvez por isso tenha resolvido abordar este tema, até para o analisar de uma forma que nunca antes tinha usado... :-)
Agradecendo as tuas palavras, sempre gentis, desejo-te uma magnífica noite!
Um beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)
P.S. Como todos, debato-me com alguns problemas, mas a insularidade não é nenhum deles, eheheheheh
De
Fisga a 13 de Abril de 2008 às 21:27
Assim se entra e sai de mais um passeio galáctico, parece-me um bom caminho para aproveitar a visitar alguns locais por onde andaremos daqui a não sei quantos mil anos. Acho que deve ser um local paradisíaco. Um abraço e uma boa semana.
De
V.A.D. a 13 de Abril de 2008 às 22:24
Na verdade, amigo, o acidente não teria sido nada paradisíaco. Acho mesmo que um "inferno de chamas" caracterizaria melhor a situação. O protagonista vê-se, depois, num lugar que desconhece e, aí concordo consigo: a paisagem seria sempre fantástica, por ser tão diferente. Sol os raios de uma gigante vermelha, qualquer um se maravilharia.
Agradecendo as suas gentis palavras, também eu lhe desejo uma excelente semana.
Um abraço.
De
Fisga a 14 de Abril de 2008 às 10:06
Sim amigo. Eu só quis fazer referencia ao pós morte
porque o antes imediato, dá-me algumas náuseas.
Um abraço e um bom dia.
De
V.A.D. a 15 de Abril de 2008 às 02:17
Não consigo avaliar nenhuma das situações, mas desconfio que só me virei a preocupar com o antes... :-)
Votos de uma excelente noite, amigo!
Um abraço.
De
Fisga a 16 de Abril de 2008 às 10:20
É tudo uma questão de prudência, eu aventuro-me a fazer avaliações, só me falta saber até onde chega a credibilidade das mesmas, se é que tem alguma credibilidade. Um abraço e um bom dia de trabalho.
De
V.A.D. a 16 de Abril de 2008 às 14:07
Amigo, as antecipações ou as avaliações são sempre bem-vindas. Creio que uma das coisas mais interessantes nos blogs é a possibilidade de se comentar, alvitrando hipóteses, contribuindo até para o enriquecimento daquilo que não deve ser um sistema fechado.
Obrigado. Também eu lhe desejo um excelente dia!
Um abraço.
De
Emanuela a 17 de Abril de 2008 às 00:25
..."sucedeu-se o inferno das chamas, a serenidade atenta rasgando-se na violenta aflição de um mar de fogo que carcomia o corpo e o espírito em dentadas de padecimento, a perda de consciência sobrevindo apaziguadora". É impossível não sentir nada ao ler esta descrição do que me parece uma morte terrível.
Beijos
De
V.A.D. a 17 de Abril de 2008 às 01:06
Amiga, gostaria que ninguém tivesse de passar por um padecimento assim, doloroso demais, arrepiante só de se pensar na aflição...
Tentei relatar algo que, felizmente, me é desconhecido, a não ser por relatos reais ou ficcionados de quem já se viu num inferno de chamas.
Agrada-me muito, saber que a escrita se revelou intensa... :-)
Desejo-te uma noite maravilhosa, amiga!
Um beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)
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