“Brinco com o anel rodando-o no anelar e adivinhando as inscrições que o breu não me deixa vislumbrar. O alinhamento dos planetas havia-me levado a Ta-netjeru, a “Terra dos Deuses”, fazendo-me embrenhar, a austral, nas águas do Nilo, quase até chegar a margens núbias. Num acto de requintada ironia, os astros haviam eleito uma noite em que a abóbada celeste se velara com um manto de densa bruma, passando num passo cuidadoso pelo Nectanebo, a sul do Templo de Ísis, e pelos dois enormes pórticos em “V” na semi-obscuridade. A primeira das seis cascatas lembrava a sua proximidade, com um ruído constante que criava a sensação de, mesmo aqui na ilha de Filae, as minúsculas gotinhas de humidade se fazerem sentir na pele, gelando-me. Dois pesados archotes assinalavam o primeiro pilone, iluminando em conjunto o imenso espelho de água que acrescentava no seu reflexo um pouco de magia à desértica fachada do templo.
Abeirei-me da sua superfície, mirando-me. Uma vida havia passado – havíamos percorrido o mundo, mostrando nos mais restritos círculos o engenho que havia ficado sem outro nome senão esse, envolvendo-nos em demandas científicas, conhecendo gentes em cada porto; tínhamos sofrido um pouco, sorrido um tanto e, sobretudo, havíamo-nos amado demais; fôramos companheiros, cúmplices e amantes até à sua morte – mas a minha face mal tinha sido tocada pelo tempo. Aparentemente partia como tinha conhecido Hiparco naquela noite em Alexandria, levando o mesmo anel no dedo, o astrolábio, aperfeiçoado, dentro da bolsa e o cabelo claro preso num gancho de âmbar e prata. Não havia sequer trazido o mecanismo, tinha-o doado aos sábios de Rhodes. Contudo, levava no olhar um novo sentimento que não deixaria jamais. Um familiar clarão iluminou a noite. Encaminhei-me vagarosamente para lá.
Teria saudades.”
Sophia
Pouco antes da Páscoa do ano de 1900, uma tempestade desviou de sua rota um barco grego de pescadores de esponjas, fazendo-o chegar à pequena ilha de Antiquitera, a meio caminho entre o Peloponeso e Creta. Quando mergulharam a sessenta e um metros de profundidade, encontraram os restos de um navio romano que havia naufragado por volta do ano 65 aC. Durante ano e meio, pioneiros da arqueologia submarina recuperaram esculturas de bronze e mármore, ânforas e uma miríade de pequenos objectos. Enquanto examinava os despojos em 1902, Valerios Stais, director do Museu Arqueológico de Atenas, descobriu a máquina, em elevado estado de degradação. O aparelho, sofisticadíssimo para a época em que foi construído, constitui uma das maiores maravilhas tecnológicas de toda a história da humanidade.
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (IV) (http://www.newyorker.com/images/2007/05/14/p465/070514_antikythera01_p465.jpg )
“Who dares to love forever?
When love must die
But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips (…)
And we can love forever
Forever is our today (…)
Who waits forever anyway?”
Obrigado, Sophia!
Obrigada Sophia e V.A.D.! Vocês escrevem admiravelmente bem e esta vossa Antiquitera teve um magnífico final. Muito movimento, acção e descrição e um final sereno, embora surpreendente! Estou a ficar fã!
Um bom fim de semana! :-)
De
V.A.D. a 6 de Abril de 2008 às 01:41
Eu é que devo agradecer, em meu nome e no da Sophia, as tuas palavras, cheias de amabilidade. Representam um enorme incentivo e fazem-me ficar contente, por saber que o resultado desta experiência, que me deu um enorme prazer, conseguiu cativar quem muito gentilmente foi lendo os capítulos.
Refiro que muito do que está no conto tem por base factos históricos que, na medida do possível, foram respeitados. A mitologia nórdica, embora complexa, representou também um grande papel na construção do enredo.
Desejo-te uma magnífica noite e um excelente domingo, amiga!
Um beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)
E eu adorei esse teu Odin, que já conhecia de algures na minha juventude! Também já me tinha apercebido, pela forma como escreves e também porque um ou outro desses factos também andam a marinar algures no meu ~conhecimento, que o que tu escreves parte - tanto quanto de ti li - de factos históricos. Por isso gosto tanto de te ler...
Lembraste bem do Júlio Verne, com certeza. Aos doze anos já tinha lido toda a sua obra. De alguma forma me evocas o Verne e esse seu espírito inovador e arguto.
Tem um excelente domingo! :-)
De
V.A.D. a 6 de Abril de 2008 às 22:30
É verdade, amiga. Embora aprecie muito a ficção, aquilo que vou escrevendo tende a ter uma base sólida, seja ela feita de factos históricos, seja ela construída com realidades científicas ou, pelo menos, recorrendo a cenários plausíveis.
No caso concreto, as datas que veladamente são referidas no conto - a ida de Hiparco para Rhodes, por exemplo - correspondem a dados que são conhecidos e que estão devidamente documentados.
Por isso, de certa forma, tento sempre transmitir a quem gentilmente me lê algumas informações que, podendo ser destituídas de interesse, respeitam ainda assim o actual estágio de conhecimento.
Amiga, sinto-me obviamente lisonjeado por insinuares uma possível comparação com um dos maiores escritores de sempre. Afirmo-te que tenho plena consciência das minhas limitações e que me sei apenas alguém que adquiriu, ainda há muito pouco tempo, o gosto pela escrita, e que tenta apenas partilhar com os amigos o seu entendimento das coisas... :-)
Obrigado pelas amáveis palavras. Sabes, certamente, que o apreço é recíproco.
Desejo-te um óptimo final de domingo e uma semana magnífica!
Um beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)
Para ti também amigo! E mantenho a comparação!
De
V.A.D. a 7 de Abril de 2008 às 02:14
Uma vez mais te agradeço, amiga, a gentileza que sempre tens manifestado para comigo.
Um beijo e um enormeeeeeeeee sorriso... :-)
Que vergonha! Pelo menos um erro ortográfico ficou no meu comentário anterior. Só quando carreguei no botão do rato é que dei por isso, mas já era tarde...
Paciência!
De
V.A.D. a 6 de Abril de 2008 às 22:32
Amiga, não te martirizes com erros ortográficos... Ninguém está livre de alguns "lapsus scribendi"... :-)
Beijo... :-)
De
Emanuela a 5 de Abril de 2008 às 02:26
Quem sabe o aparelho não tenha mesmo sido contruído com a ajuda de "deuses"? Ou da bela "deusa"? Certamente, nunca saberemos.
Beijos
De
V.A.D. a 6 de Abril de 2008 às 01:49
Houve quem aventasse essa hipótese, amiga. O aparelho apresenta uma tal complexidade e espelha um tão elevado grau de conhecimento que, para muitos, custa a crer que tenha podido ser construído por um simples homem.
Embora o conto tente apresentar essa perspectiva, acredito que a antiguidade clássica foi uma época em engenho e a sabedoria atingiram um nível de que só agora começamos a suspeitar. Infelizmente, todas as culturas entram em declínio, após um tempo de grandiosos feitos. Não consigo sequer imaginar tudo aquilo que se perdeu nas trevas dos tempos e nos incêndios de Alexandria...
Desejo-te uma óptima noite e um magnífico domingo!
Um beijo e um enormeeeeeee sorriso... :-)
De
perola a 6 de Abril de 2008 às 19:52
Amigo:
Engraçado isso do anel, estive hoje a pensar nesse tipo de coisas, há por vezes coisas materiais que marcam datas, marcam decisões, marcam para sempre e por isso mesmo as mantemos connosco, como que amuletos. Mesmo daquilo de que temos saudades.
Um grande beijo para ti.
De
V.A.D. a 6 de Abril de 2008 às 22:41
Creio que desenvolvemos um gosto por artefactos que representam marcos importantes na nossa vida. Anéis, medalhas e tantos outros símbolos, servem para não deixar que a memória de desvaneça... São também sinais, chamando a atenção para o relevo de determinados eventos...
No caso concreto, o anel evoca os Nibelungos, uma vez que a mitologia nórdica teve um papel importante neste conto.
Desejo-te um óptimo final de domingo e uma excelente semana, amiga!
Um grande beijo e um enormeeeeeeee sorriso... :-)
De Café com Natas a 8 de Abril de 2008 às 08:56
Olá V.A.D.,
não tenho comentado muito ultimamente, mas gostava de dizer-vos que segui o vosso "projecto" com atenção, um bocadinho aqui, um bocadinho no trabalho, sempre que tinha um tempo mais "morto". E sabes, dei bom uso a esse tempo. Gostei imenso de vos ler.
Por vezes, assim quase do nada surgem coisas que nos fazem bem ao ânimo, ao pensamento, à imaginação. Foi este o caso.
Vocês estão de parabéns! Ficou muito bom mesmo.
Beijinhos aos dois
De
V.A.D. a 9 de Abril de 2008 às 01:55
Olá, amiga. Sei que nem sempre há disposição ou tempo para se fazer tudo aquilo que se gostaria. Fico, obviamente, contentíssimo por perceber que este projecto, que me deu tanto prazer, pôde ser considerado digno de apreço.
Não me canso de elogiar o empenho da Sophia, cuja escrita é poderosa e envolvente, nesta parceria tão agradável. Por isso, em meu nome e no dela, agradeço profundamente as tuas palavras e a amabilidade que sempre tens demonstrado, seja através de comentários, seja pelas tuas passagens, mesmo que silenciosas, por este espaço.
Um grande beijo e um enormeeeeeeeee sorriso... :-)
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