“Olhei demoradamente através da translucidez do vidro, a janela do hotel virando-se para o deserto que se assenhoreara da vastidão, quilómetros e quilómetros esvaziados de vida assemelhando-se à inanidade de mim mesmo. As inumeráveis dunas, enchendo a paisagem fastidiosa do meu descontentamento, elevavam-se como pirâmides caoticamente desfeitas, os dias sucedendo-se na cadência lenta das alvoradas tépidas e das tardes infernais, o trabalho bem pago progredindo de acordo com o previsto, a chuva ausente havia meses levando-me, pelo crepúsculo, ao delírio onírico de rios transbordantes e de gotas geladas, caindo do céu de Março em manhãs húmidas e cinzentas de latitudes médias. Virei o meu olhar para a imagem impressa na brochura, a quimérica clepsidra de Karnak transportando-me até aos dias de glória e prosperidade daquela terra agora tão diferente, Amen-hotep III governando aquele país antigo, o nono faraó da décima oitava dinastia patrocinando a contagem de algo tão precioso quanto a água, a vã tentativa de o dominar o tempo levando à construção do dispositivo primevo, tão distante dos relógios de césio quanto apartada de mim estava a felicidade. Mas o tempo fluía indómito e imparável, o líquido cristalino vertido pelo orifício de uma clepsidra imaginada declarando o avizinhar do momento em que retornaria a casa…”
V.A.D. em Clepsidra
Imagem: Clepsidra de Karnak (www.arqueoegipto.net/articulos/egipto_tematico/calendario.htm)
De
**** a 10 de Março de 2008 às 16:40
“dias de glória e prosperidade daquela terra agora tão diferente” – levaste os pensamentos do teu personagem para a civilização antiga que sempre exerceu uma atracção inexplicável e magnética sobre mim. Há algo que nela me encanta e que não conseguiria explicar mesmo que tentasse.
Sem dúvida uma fortuita coincidência... ontem estava para escrever um texto exactamente com o mesmo título que o teu, todavia, não a clepsidra, mas o relógio de corda que aqui tenho ao pé atraiçoou-me. As horas passaram e acabei somente por comentar o teu outro texto e empregar a palavra que me ia assolando a memória de forma tão persistente...
Há um sentimento melancólico de saudade e de perda que parece nascer no texto, um vazio causado pelas ruínas duma sociedade magnífica, bela, imponente e, contudo, não impune aos efeito erosivo do tempo que nos escapa mais facilmente pelos dedos e pelo “orifício de uma clepsidra imaginada” do que a própria preciosidade da água. Faz-nos encarar a finitude de tudo, ecoando memórias de tempos áureos em cada pedra esculpida pelo saber dos antigos, faz-nos admirá-los, chorá-los, invejá-los.
Eles tentaram medi-lo numa tentativa desesperada quanto fútil de o dominar – despendendo uma quantidade fantástica de energia esta civilização para tentar alcançar a imortalidade –, nós arranjámos maneiras mais sofisticadas para quantificar, mas ainda estamos dolorosamente longe do controlo.
“tão distante dos relógios de césio quanto apartada de mim estava a felicidade” – deveras espero que não partilhes este sentimento com o personagem
Beijos
boa noite
e que tenhas mais sorte a subornar a clepsidra do que eu tenho tido, que consigas domesticar o “tempo [que] fluía indómito e imparável”
Sophia
De
V.A.D. a 11 de Março de 2008 às 02:44
Amiga, creio que no antigo Egipto são condensados o fascínio e o mistério das civilizações perdidas na noite dos tempos, a atracção por uma época gloriosa e tão diversa da nossa fazendo-se sentir em cada um de nós...
Sabes que o tempo e a sua passagem são temas que sempre me suscitaram um desmedido e, de certa forma, inexplicável interesse. Era inevitável escrever algo sobre esta primordial forma de contar as horas que passam, uma homenagem às mentes que desenvolveram o conceito, a constatação de que não podemos relegar para segundo plano o fluir de algo que acaba por nos controlar...
Maravilho-me com os feitos de engenharia, fico assombrado pela organização e logística necessárias à construção de tão colossais monumentos, templos e pirâmides representando o auge da sabedoria ancestral. Tal como referes, sinto entranhar-se em mim a nostalgia de um glorioso tempo passado, a magnificência de um povo perdida para sempre...
O personagem está cansado de estar longe de casa, mas sobretudo cansado de ver à sua frente os escombros de um lugar que foi próspero e magnífico, sem que possa participar do esplendor erodido pelos séculos...
Hoje não quero domesticar o tempo; quero sim desejar-te uma magnífica noite!
Um beijo e um enormeeeeeeeee sorriso... :-)
De Lina a 11 de Março de 2008 às 01:21
Tu não tiveste tempo para saber que eu adoro e fascino me com o Egipto tanto ou mais como tu com o espaço e o Universo. ainda hoje comentei a lazy cat com o nick Farao das Areias que ja vem de ha k'anos e chego aqui e leio este maravilhoso texto, aliás assim que via a imagem sorri :)
Será que existe um narguilé também e quem sabe um objecto amaldiçoado?
Os faraós eram terríveis todos eles, e sem grande respeito pela vida humana mas honravam a morte, estranha ironia...
Gosto da genial e quase pérfida Cleópatra ( mais que estratega ela era implacável).
Desculpa alongar-me a este entusiasmo, de facto o país do Nilo é algo que faz parte de mim mesmo sem lá ter ido fisicamente.
Um beijo e um sorriso do tamanho do deserto.
De
V.A.D. a 11 de Março de 2008 às 03:12
Amiga, é um prazer enorme ler-te. Espero que tudo te esteja a correr conforme desejas!
Creio que, embora em diferentes níveis, muitos de nós se sentem maravilhados com aquilo que foi o esplendor de uma civilização antiga e fantástica, medido pelas faraónicas obras arquitectónicas e pela riqueza cultural e material, infelizmente erodida pela passagem indelével de séculos. Tinha suspeitado desse teu fascínio, precisamente pelo uso do "faraó das areias" como endereço de internauta... :-)
Se analisarmos a história, constatamos que quase todos os grandes impérios da antiguidade tiveram déspotas como líderes: Gengis Khan, Qin Shi Huangdi, Dario I, apenas para citar alguns, todos eles exercendo um domínio férreo sobre os seus vassalos... O Egipto não fugiu à regra... :-)
A história está recheada de figuras lendárias, de alianças, de traições e sobretudo de honra, algo que, infelizmente, parece ter-se vindo a apartar dos políticos da actualidade... :-S
Nenhum comentário é demasiado longo para este tema. Além disso, aprecio as análises de quem gentilmente comenta os meus textos; são complementos de valor inestimável!
Agradecendo a tua visita, desejo-te uma excelente noite!
Um beijo e um enormeeeeeeeeeeeee sorriso... :-)
De Grão de pó do Universo a 11 de Março de 2008 às 08:49
Once my father said:
Tu pareces mesmo a Cleópatra...
Eu teria uns 9 anos e pensei: Como é que ele sabe como a Cleópatra era? Será que ele já foi ao Egipto?
Mas, e ela? Ainda está viva? As pessoas do Egipto devem viver muitos anos...
Eu não percebi muito bem na altura o que ele quis dizer com aquilo.
Hoje talvez entenda melhor... e o tempo. O tempo é um pedaço de história, seja contada por fios de água, seja contado por fios de vida.
Eu quis mesmo ir ao Egipto naquela altura ver a rainha, mas ele disse-me que não me deixavam entrar nas pirâmides... Os pais são assim às vezes!
... terminando agora o meu pensamento faço uma ligeira alteração: o Tempo é a própria História.
E eu acho que tens feito história com as tuas viagens imagino-reais.
Tem um dia excelente!
De
V.A.D. a 12 de Março de 2008 às 01:12
Cleópatra significa “glória do pai”; foi mais que apropriado, aquilo que o teu pai te chamou pois, para um progenitor, não há nada que se assemelhe à descendência... Creio ser fácil de entender, um pai olhar a filha como uma rainha... :-)
O tempo, essa infatigável sequência de instantes é algo que sempre me fascinou. Desde que me lembro que medito sobre o que será, se existiu um início, se haverá um fim... Fascino-me com as civilizações que nasceram e ruíram sob os auspícios dos séculos que passam, a egípcia, a par da grega, representando a condensação de todos os enigmas da antiguidade...
Subscrevo... O tempo encerra segredos acumulados, incontáveis gerações sentindo a sua passagem. É a História, mesmo que não possa ser contada na íntegra...
Obrigado, amiga. Gosto das tuas palavras, sempre gentis e incentivadoras.
Desejo-te uma magnífica noite!
Um beijo e um enormeeeeeeeeeeee sorriso... :-)
De Lina a 11 de Março de 2008 às 10:12
De facto falar do Egipto é recordar que há magia por detrás do factor humano, quer pelas leia da matemática e das suas coincidências surpreendentes nas medidas das pirâmides, quer pela história de um povo que tinha um culto ligado à importância de Deuses que eram tão humanos como eles acreditavam que os Faraós fossem. Há tempos li as 'Memórias de Cleópatra' (os 3 volumes) evidente que é um digamos 'romance' que idolatra César e a Farani do Egipto mas que tem muitos factos históricos inabaláveis como os combates indescritiveis das legiões romanas, a forma como se alimentavam e a força que tinham aqueles homens para suportar o peso das armaduras, escudos, etc. Assim como a espada do nosso Rei Dom Afonso Henriques que se pasma hoje ao saber-lhe o peso.
E assim e continuando a deliciar-me com este rumo pelo Oriente, deixo-te algo que escrevi quase há um ano atrás:
Por entre dunas errantes
Oásis perdidos no tempo
Por dias sem ter um antes
Lanço o meu olhar distante
No deserto em que me entendo
Em utopias de encanto
De momentos permanentes
Ausências que doem tanto
Saudades que são pranto
De alma, coração urgentes
Sigo sem rio ou mar
Em tempestades de areia
Finjo rir e até cantar
Mas não saio desse lugar
Que me prende a uma ideia
Contemplo sem descobrir
Esse outro lado de mim
Nada é, deixa fluir…
Talvez apenas sorrir…
Não ter princípio nem fim
Retira todas as cores
Que inundam o Universo
Mas avisa quando fores
Sem pressas ou clamores
Leva contigo este verso
Se me esqueceres nessa ausência
Que ocupa o meu lugar
Cada sombra tem a essência
Da suave permanência
Da miragem dum olhar
:) Estou bem, always look at bright side of life.
Um beijo e obrigada pela liberdade de poder escrever aqui.
De
V.A.D. a 12 de Março de 2008 às 01:29
Sabes, acho toda a antiguidade verdadeiramente fascinante. Encerra enigmas que provavelmente nunca serão desfeitos; lembrei-me de repente de Stonehenge e dos Moais da Ilha da Páscoa, das pirâmides aztecas e de Angkor Vat... E a esfinge, cuja datação a remete a uma época ainda mais envolta nas brumas do tempo... Podia continuar, ao longo destas linhas, a enumerar os feitos extraordinários de civilizações cujos conhecimentos de matemática, astronomia e arquitectura são tão maravilhosos quanto dignos de uma sociedade tão evoluída quanto a nossa...
Embora a esperança média de vida fosse curta, os antigos representavam, de facto, a sobrevivência do mais apto. Os fracos simplesmente morriam cedo... Pode ser assustador, se pensarmos na realidade fria destes factos... Mas era assim, e os guerreiros eram realmente homens possantes.
Brindaste-me com um magnífico poema, amiga. Levo comigo "este verso", não te esquecerei "nessa ausência"!
Quero que este seja um espaço de partilha. Já deves ter reparado que os comentários, gentilmente aqui deixados, são de enorme importância para mim. Representam mais do que simples apreciações daquilo que escrevo, complementando os textos com ideias e opiniões que valorizo muitíssimo, a ponto de responder a todos, cuidadosa e encarecidamente. Por isso, amiga, o teu contributo é mais do que bem vindo...!
Desejo-te uma magnífica noite!
Um beijo e um enormeeeeeeeee sorriso... :-)
Tempo. Tempo é algo que desesperadamente me falta neste momento. Passe o pleonasmo porque "momento" também é tempo! Se não estivesse viva teceria algumas teorias, bem mais intuídas do que documentadas. Como estou viva tenho de me reger pelas leis da biologia. E o TEMPO é uma delas...
Não será exactamente uma lei. É mais uma causa/consequência da vida. Tenho muitas certezas e pouca habilidade para expôr as minhas teorias... a não ser em poesia.
Sorrisos :-)
De
V.A.D. a 12 de Março de 2008 às 01:39
O tempo é algo do qual temos apenas uma superficial noção. Mais do que parte das leis biológicas, integra o próprio tecido básico do Universo onde vivemos, é irmão gémeo do espaço e nasceu no instante primevo em que de uma singularidade se dimanou tudo o que existe...
Influencia a nossa vida sob todos os aspectos, desde os mais simples e moderadamente controláveis até aos que estão completamente fora da nossa alçada, sendo o melhor exemplo disso a lenta mas contínua caminhada na direcção da velhice...
Amiga, reafirmo que a tua poesia vale por mil esquematizações...!
Um beijo... :-)
Obrigada Amigão!
De
V.A.D. a 13 de Março de 2008 às 02:05
Amiga, não há nada a agradecer, na medida em que aquilo que refiro corresponde de facto ao meu entendimento... :-)
Desejo-te uma excelente noite!
Um beijo... :-)
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