“Amo a noite com paixão, com um amor instintivo, profundo, invencível. Amo-a com todos os meus sentidos, com os olhos que a vêem, com o olfacto que a respira, com os ouvidos que a escutam em silêncio, com toda a minha carne que as trevas acariciam. As calhandras cantam ao sol, ao ar azul e quente, ao ar ligeiro das manhãs claras. O mocho foge na noite, mancha negra que passa através do espaço escuro e, alegre, embriagado pela negra imensidade, solta o seu grito vibrante e sinistro. O dia cansa-me e entedia-me. È brutal e ruidoso. Levanto-me a custo, visto-me com lassidão, saio com mágoa, e cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento cansa-me como se levantasse um fardo esmagador. Mas quando o sol desce, uma alegria confusa, uma alegria de todo o meu corpo invade-me. Desperto, animo-me. À medida que a sombra aumenta, sinto-me outro diferente, mais jovem, mais forte, mais vivo, mais feliz. Vejo a grande sombra suave caída do seu a espessar-se: afoga a cidade, como uma onda imperceptível e impenetrável; oculta, apaga, destrói as cores e as formas. (…) Um impetuoso, um invencível desejo de amar acende-se-me nas veias.”
Excerto de A Noite, de Guy de Maupassant, um dos melhores contistas franceses de sempre. Nascido em 1850, viria a falecer aos 42 anos, após tentativa de suicídio, resultante de perturbações causadas pela sífilis. Em parte da sua vasta obra, Maupassant envereda pela exploração do terror e do macabro, em óbvio paralelismo com a sua própria descida ao inferno da loucura.
Imagem: Noite (www.konect.org/blog/images/nuit.jpg)
“De cada vez que a colher tornava a cair no cálice repleto de licor incendiado, os objectos desenhavam-se nas paredes com formas desconhecidas, com tonalidades inauditas, desde os velhos profetas de barba branca, até às caricaturas que povoam as paredes das oficinas, e que pareciam um exército de demónios como se vêem nos sonhos, ou como os agrupava Goya. Enfim, a calma brumosa e fresca do exterior contemplava o fantástico do interior. Acrescentai a isto que de cada vez que nos fitávamos, aparecíamos uns aos outros com rostos de um verde acinzentado, olhos fixos e brilhantes como carbúnculos, lábios pálidos e faces encovadas. (…) Toda a gente sofreu como nós a influência das salas vastas e tenebrosas, como as descreve Hoffman, como as pinta Rembrandt, toda a gente sentiu, pelo menos uma vez, estes temores sem causa, estas febres espontâneas ao avistar objectos a que o raio pálido da Lua ou a luz incerta de um candeeiro emprestam uma forma misteriosa; toda a gente se encontrou num quarto grande e sombrio, ao lado de um amigo, a escutar um conto inverosímil, sentindo aquele terror secreto que podemos fazer cessar num ápice acendendo um candeeiro ou conversando sobre outra coisa: o que fugimos de fazer, tanto o nosso pobre coração precisa de emoções, sejam elas verdadeiras ou falsas.”
Excerto de História de um Morto, Contada por Ele Próprio, inserida na colectânea Histórias Sobrenaturais, de Alexandre Dumas (pai). Nome importante da literatura de todos os tempos, foi autor de obras sobejamente conhecidas, como Os Três Mosqueteiros, ou O Conde de Monte Cristo. Após ter escrito os seus mais célebres dramas e romances históricos, inicia-se na literatura do fantástico e do sobrenatural, aí reflectindo sobre o bem e o mal, e interrogando-se sobre as forças obscuras que podem actuar e residir no ser humano.
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