“Havia ali qualquer coisa, uma vaga sensação de presença insinuando-se-lhe nas profundezas do subconsciente, um contorno desafiador materializando-se num quê tão indistinto quanto indizível, uma abstracta noção de perigo correndo-lhe espinha acima num involuntário eriçar de cabelos, a pele arrepiando-se num ligeiro tremor, os temores ancestrais vertendo-se em gotas de suor frio. Imobilizou-se. Um silêncio sepulcral, acentuado pelo fôlego contido, envolvia-o como um manto tão negro como a escuridão da cave bafienta onde ousara penetrar, e era quebrado apenas pelo pungente martelar descompassado do coração, o sangue carregado de adrenalina latejando nas artérias, a atenção a tudo o que se passava em seu redor redobrando-se numa desproporcionada tensão. Um vulto moveu-se, o raspar de garras no chão de pedra nua chegando-lhe ténue aos ouvidos, os seus olhos divisando o brilho amarelado e doentio de outros olhos, a entidade que invadira aquele lugar supostamente inexpugnável mirando-o num misto de escárnio e desafio. Num salto impossivelmente brusco, atirou-se à figura medonha que reconhecera de imediato, um grito animalesco rasgando-lhe a garganta pelo gume afiado do ódio transbordante. Detestava mortalmente aquele alter-ego…”
Sólidos poliédricos tangíveis, ou meros hologramas inventados, cheios de denso mistério e de absoluta certeza, massa descomunal e assombrosa leveza, somos materiais inacabados, mentes inquietas e raciocínios incríveis. Somos seres espantosos, capazes de maravilhosas abstracções, complexos e fabulosos, cheios de sonhos e ilusões. Dos medos libertados, viajamos pelos céus nebulosos, construindo mundos imaginados. Resolvemos questões, quebramos barreiras, cruzamos fronteiras, arranjamos soluções. Fugindo aos limites da natureza, desenhamos imagens magníficas, visões dolorosas e terríficas ou cheias de cor e beleza. Somos emoção desregrada, inteligência e instinto, matemática pura ou bebedeira de absinto, introspecção concentrada. Somos deuses e demónios, sinapses e axónios, fibra e carne ensanguentada. Somos carrascos e juízes, réus, suspeitos e arguidos, umas vezes mortalmente feridos, outras… Imensamente felizes!
Vídeo: In The End (Linkin Park) (www.youtube.com/watch?v=aZp2jAdBu1o)
Em certos momentos de inquietude, ponho de parte alguns pedaços ínfimos de verdade, abomino a aceitação calada de algumas das fronteiras que a natureza humana impõe, recuso o auto-sacrifício de me avassalar à pasmaceira imposta pela mesquinhez dos limites. Cerro as pálpebras e vejo mundos em construção, vórtices de energia dominando as paisagens desassossegadas pela concepção de alternativas inventadas. Interiorizo-me, a procura da essência sendo levada a um extremo que me esgota e extasia, examino cada recanto do meu ser, consciente de que muito mais se esconde nos subterrâneos inacessíveis, os vislumbres de um palco, de um actor solitário manipulando fios suspensos de pernas para o ar e o reflexo de um títere imago de mim mesmo indiciando a peça que é representada no anfiteatro sem luz do Id. Não me reconheço em reproduções meramente tridimensionais, a translucidez do tempo e as etéreas linhas de causalidade ou de casualidade assumindo uma relevância exasperantemente manifesta, muito antes da alvorada ou pouco depois do pico solar, o equador de quem sou transmutando-se em frialdade polar… Ou ao contrário, nem sei bem…
Vídeo: VjXoe Cosmic Gate (Thievery Corporation) (www.youtube.com/watch?v=ek4C1E-z5tw)
“Como a fragrância que se espalha ao sabor de um movimento etéreo, o aroma incorpóreo dos seus pensamentos atravessava os golfos da distância, o espírito reivindicando a plenitude de tudo tocar, o seu intelecto exultando com o percebimento de outros numa imprevisível singularidade. Via com clareza aquilo que outros olhos viam, nenhum segredo se lhe ocultava, nenhum sabor lhe era estranho. E, contudo, ansiava descobrir, por entre a amplíssima mole, aquela que o complementaria, que daria sentido à invenção insuspeitamente exequível de conhecer sem ter de estar, de se dar a perceber sem desvendar a substância, a imaterialidade dos raciocínios exteriorizando-se bastamente e ainda assim tão bastamente falha de um diálogo ansiado numa premência muda. Era extensa, a agra semeada de perguntas, tão imensa quanto a safra de respostas que tinha armazenado cuidadosamente nos silos frescos da memória que ia sendo arquitectada… Num lugar absurdamente próximo e tão paradoxalmente remoto, uma mente debatia-se na impugnação da velha lei da humanidade, a determinação de se desagrilhoar aniquilando o derradeiro obstáculo, a libertação assentindo finalmente a unicidade, a fusão de dois entes predestinados erradicando decisivamente a sombra num flamejante encontro.”
V.A.D. em Telestesia
Vídeo: Destiny (Zero 7) (http://www.youtube.com/watch?v=ZncATpZre_w)
“Desenleou-se das palavras, abdicou da fútil tentativa de se descrever, os caracteres inventados não chegando para verter no papel todo aquele pélago de emoções incontidas e vertiginosos pensamentos, as palavras parecendo cada vez mais exíguas, incapazes de encerrar as infinitudes deflagrantes de uma indómita e impetuosa mente. Ténues, a princípio, as ondas partiam do seu encéfalo, perturbando o falacioso isolamento de outros egos, insinuando-se disfarçadamente por entre sinapses, as dendrites reagindo, os axónios parecendo envergonhar-se perante a intrusão inesperada mas irresolutamente admitida. Viam-lhe, sentiam-lhe o âmago, sorviam-lhe a intrincada nitidez da essência, a transparência do seu ser entregando-se à intelecção, a clareza das suas ideias transformando o entendimento de quem intuía a sua presença. Tornou-se parte de um todo crescente, a consciência de quem era disseminando-se, harmoniosa, pelos raciocínios inventados de quem a acolhia. Aos outros eram abertas passagens para os lugares onde estava, imagens pintando cores, sons sendo escutados, os conhecimentos difundindo-se num fluxo inesgotável…”
V.A.D. em Telestesia
Vídeo: Porcelain (Moby) (http://www.youtube.com/watch?v=D1Fcaro25Ek)
“Alimento-me de ilusões, vivo dominado por desejos. Amiudadamente, crio ao meu redor um Universo de ficção, convencendo-me da minha bondade, quando aquilo que quero não passa de uma manifestação egoísta de amor-próprio, a vontade de olhar o próprio umbigo sobrepondo-se à regularidade ponderada de uma existência serenamente inquieta. Nessas alturas, um louco insinua-se no interior do meu crânio, ainda que por breves instantes, conspurcando, fazendo do meu espírito um lugar sebento, a imundície da sua actividade desvairada deixando na atmosfera o odor pútrido do destempero, os corredores repugnantes da perversidade, desselados momentaneamente, pejando-se de fantasmas e tesouros amaldiçoados, sanguessugas e vermes de vorazes e acres apetites. Grutas sulfurosas e labirínticos subterrâneos servem-lhes de morada, negrumes escuros, escorrendo pelas paredes da mente adoecida, são rasgados pela vermelhidão atroz do sangue infecto, a infinita complexidade e horror da condição humana sendo-me revelada pela natureza reptiliana do subconsciente. E depois, imobilizando-me, esforço-me por expulsar aquele agoniante fedor dos meus pulmões…”
V.A.D. em Fedor
Imagem: Obnóxio (http://www.spirit-of metal.com/les%20goupes/A/Attitude%20Adjustment/The%20Good,%20The%20Bad,%20The%20Obnoxious/The%20Good,%20The%20Bad,%20The%20Obnoxious.jpg)
Uma gargalhada irracional flutuou pela sala. A própria luz, que até então entrava pela pequena ventana em raios de um branco imaculado, pareceu tornar-se vermelho-acinzentada, o sangue enfermo da insanidade inquinando-lhe o percebimento, a cinza da degradação corrompendo o ar. O mundo transformou-se, pairando numa quietação que não era exactamente silêncio. A respiração, arquejante e desregrada, silvando como um réptil encurralado e o coração, ressoando em batidas alvoroçadas, preenchiam o estrépito do sossego. Sentia uma brisa tórrida e pútrida a gelar-lhe a cara, os membros e o corpo; um perfume de violetas amarelas entranhava-se-lhe nas narinas, recordação endemoninhada de um outro tempo, nunca vivido, nem sequer sonhado. Alfinetes duros e pontiagudos quebravam-se, a cada toque, na pele desnuda de um corpo que teimava em ser de um outro alguém que não ele, um formigueiro hiperestésico que lhe empanava os resquícios da razão. Sentiu-se desfalecer numa maré de energia que o alagava em golfões de suor. Acordou, trémulo e debilitado, deitado numa enxerga da ala de psiquiatria do velho hospital, os sedativos roubando-lhe o Universo por onde às vezes viajava…
Vídeo: Insanity (Supuration) (www.youtube.com/watch?v=6l8Q7xtO5gI)
Toda a fúria é insana e não há fúria limpa; é uma coisa suja, nascida nas partes mais profundas e arcaicas do nosso ser, feita de rugidos surdos a raspar a garganta, e de raciocínios toldados pela incoerência das emoções reptilianas, vindas de uma época em que os corpos chafurdavam na lama imunda dos pântanos devonianos. A fúria rasga a mente com a explosão cegante da adrenalina, e a invencibilidade, ilusória, encontra apoio na pontual resistência à dor e na insensatamente descomunal força física. Os impulsos mais básicos assumem o controle; a autoconsciência desvanece-se e importa somente a destruição do objecto que acendeu o rastilho deste estado de loucura violenta, desta doença repentina, que consome e atormenta. Pode ser que assim o mundo, subitamente incompreensível e injusto, se desfaça numa miríade de pedaços...!
Mas, no centro do mecanismo humano, vive também a racionalidade. Há que respirar pausadamente. Há que pensar, há que serenar…
Imagem: Fúria (www.phirebrush.com/issues/38/artwork/mysnapz%20-%20rage.jpg)
Tantas e tantas vezes nem de nós sabemos. Temos apenas vislumbres fugazes da nossa complexidade, e cada gesto, cada olhar, cada movimento que fazemos, pode nem depender do nosso pensamento consciente. Temos a ilusão do controle, mas muitas vezes quem nos rege são as partes mais antigas do nosso cérebro, donas dos instintos e das emoções. Tantas vezes agimos impensadamente, e os resultados dessa acção podem assumir aspectos tão diversos... A racionalidade, que gostamos de ter como certa, é jovem sob o ponto de vista evolutivo e revela-se muitas vezes insipiente e titubeante; nem sempre a lógica racional empregue assenta sobre bases sólidas, podendo criar nós no fio do pensamento, tornando-o cheio de irregularidades, dificultando a compreensão do eu e dos outros. Por outro lado, a análise que fazemos dos dados que possuímos mostra-se por vezes certeira e julgamos, temporariamente, que somos detentores do dom da infalibilidade… Podemos ser babilónios, guiados muito pelos instintos e pela intuição, seres errantes ao sabor das vagas dos sentidos e das emoções, olhando apenas o presente, ridicularizando o passado e não prestando atenção ao futuro. Podemos ser gregos, interessados na ordem dos fenómenos, atraídos pelo aparato lógico e olhando a cronologia como um mapa que nos direcciona num tempo que há-de vir e que se torna presente a cada instante. Creio que as diversas facetas da personalidade de cada um coexistem e complementam-se, transformando a existência num desafio permanente, numa inquietude serena, ao invés de se limitar a uma pasmaceira acéfala.
Imagem: Existência (http://neosurrealism.artdigitaldesign.com/)
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