Regozijo-me com coisas pequenas: três gatinhos num velho palheiro trouxeram-me à mente a recordação. Embora ainda não fosse verão, o dia estava quente e soalheiro, viam-se andorinhas às dezenas. Foi no pátio da velha morada, em frente à adega secular, que vi a gata, miando de dores. A minha avó tratava das flores, quando a resolveu ajudar. Pegou nela, desceu a escada. Ardendo de curiosidade, segui-as; queria ver… Deitada na palha macia, tendo-nos por companhia, a gata parecia gemer, talvez de esforço ou ansiedade. Vi a maravilha da vida nascer de dentro dela. Fiquei assim, assombrado, quieto, mudo, atordoado… A natureza é de facto bela; precisa apenas de ser entendida. Hoje, repetiu-se a magia. Três gatinhos, o mesmo local. Voltei a ser criança…! Levado por uma lembrança, revivi um momento especial. Enchi-me de uma imensa alegria…!
Imagem: Gatinho, hoje
Respondendo a um desafio da Lazy Cat, partilho convosco uma memória recorrente, as tardes da minha infância sendo passadas na centenária casa dos meus avós maternos, o meu avô ensinando-me o muito que sabia de geografia, os nomes dos países e das respectivas capitais fluindo-lhe com a extraordinária simplicidade de quem nunca permitiu que o analfabetismo fosse ignorância…
“Gostava de percorrer contigo o mapa-múndi…”
Imagem: Mapa-Múndi (original em www.bibliosoft.pt/images/mapa_mundo.gif)
Lanço-vos o repto: uma memória, seis palavras… Seis Blogs...
E a chuva havia parado. À esquerda, a terra macia, lavrada de castanho-escuro, parecia exalar o cheiro de mil manhãs de orvalho, mas era numa tarde do princípio de um Janeiro qualquer, quando as nuvens plúmbeas encobriam o sol e o vento frio soprava, arisco, sobre os ramos nus das árvores do jardim, que a minha consciência assegurava estar. À minha frente, a extensão verde da relva era delimitada por um canteiro de rosas por desabrochar, encostado ao muro de tijolo rebocado, para lá do qual o marulhar da água, em corredura pela valeta, trazia à lembrança outros Invernos e o agradável barulho da regueira cheia, no cavado do pequeno vale adjacente à velha casa da minha meninice, a grossa porta de madeira, adjacente ao pátio encharcado, servindo de acesso ao palheiro desnivelado, onde os voos em queda livre se faziam a partir do lintel, um ou dois metros acima do nível da palha solta que amortecia a queda e fazia sonhar com aventuras aéreas, um batalhão de pára-quedistas saltando para um território inventado. Indeclinável, o recuo a um tempo em que as tardes depois da escola eram passadas em brincadeiras soltas, o irmão e os primos como camaradas, o aguaceiro caindo lá fora ressoando nas telhas sobre os barrotes assentes na espessa viga mestra, contradizendo a sequidão da forragem enxuta…
Imagem: Chuva (http://tn3-2.deviantart.com/fs6/300W/i/2005/071/2/f/Rain_by_silent_reverie.jpg)
“Por um momento, quando entrei, a sala foi-me estranha. A velha mobília, cuidadosamente tratada com óleo próprio para móveis, parecia estar exactamente como sempre a lembrara: o sofá no mesmo canto, o candeeiro de pé ladeando-o e as almofadas, bordadas à mão com motivos florais, distribuindo-se sobre ele de forma ordeira. Os livros na estante dir-se-iam intocados durante a minha ausência e o pequeno mapa-mundi, cuidadosamente emoldurado, permanecia estático na parede alva, para me fazer recordar os nomes e as bandeiras dos países, a geografia política teimando em resistir às alterações de um passado recente, guardando os conhecimentos que o meu falecido avô fazia questão de partilhar. Julguei-me atracar no cais abrigado e acolhedor de uma prodigiosa ilha, isolada do tempo, imune ao bulício erosivo do oceano da vida moderna, em permanente frenesi. Olhei para a janela envidraçada, por onde penetravam os últimos raios de sol daquele límpido dia de Inverno, emprestando ao ambiente uma suavidade que me enternecia e comovi-me. Há coisas que parecem não mudar…”
V.A.D. em Imutabilidade.
Imagem: Sala (original em www.lakechamplainsummer.com/livingroom2%20%20SEwebblur.jpg)
Descia o trilho empedrado, sulcado pelas passadas de incontáveis pés, erodido pelas inumeráveis chuvas de muitos Invernos e parecia-me estar a avançar sobre uma ruína de ossos esbranquiçados pelo sol de séculos sucessivos. Na margem do ribeiro, por onde a água havia há muito deixado de correr durante todo o ano, ainda se viam as lajes onde os trapos eram esfregados, enquanto as línguas viperinas lavavam roupa suja. Dir-se-ia que o velho casebre estava há muito abandonado, as paredes desnudas mostrando as pedras irregulares cuidadosamente empilhadas numa harmoniosa confusão, escurecidas pela inacabável passagem das estações. O telhado, vergado pelo peso dos anos, fazia lembrar uma tela castanho-escura e irregular, cheia de salpicos amarelados, os líquenes e tufos de erva conquistando aquele território aéreo. Da fuga, encarvoada pela fuligem, soltavam-se rolos de fumo e no ar pairava o agradável cheiro da madeira em combustão. Antecipando as palavras que tão bem conhecia, “pode entrar, a porta ‘tá aberta!”, bati na vidraça do postigo. Um rosto, cheio de rugas e tisnado pela dura vida no campo, abriu-se num sorriso de rara espontaneidade. Entrei e dei-lhe um abraço caloroso. A fumaça, que enchia a casa e a alma do velho, começou de imediato a dissipar-se, escorrendo para a tarde fria através da porta entreaberta.
Imagem: Casebre (www.gulfislandsguide.com/photos-gabriola/images/stonehouse.jpg)
Da água, o meu olhar voltou à água. O reflexo mostrava agora um sorriso no rosto. Desaparecera, como que por artes mágicas, aquela expressão indecifrável de cansaço, que me tornava semelhante a uma estátua, mas guardei-me num silêncio de estrebuchante tranquilidade. Estava perdido num labirinto de rememorações e fazia de conta que havia retornado aos dias de antanho, quando a brincadeira era o meu mundo, edificado com a mansa simplicidade das horas despreocupadas. Tantas vezes aquele tanque havia sido um oceano imenso, onde os barquinhos, construídos de madeira e cortiça, capitaneados por lendários piratas e oficiais ao serviço de reis imaginários, se viam envolvidos em duríssimas batalhas navais. Tantas vezes havia regressado, em choro, a casa da minha avó, a roupa encharcada pela parvoíce implicante do meu irmão, que achava engraçado molhar-me… A chuva chegou sem aviso, num aguaceiro ensolarado, os pingos grossos e frios batendo com força nas pedras irregulares da parede do velho poço, à beira da ruína, depois de anos de desuso. Levantei os olhos e fui atingido bruscamente pela constatação, evidente e agradável, de que a aldeia das minhas raízes, embora jamais tivesse achado os prazeres da cidade, continuava a ser um bálsamo para a minha mente.
Imagem: Poço (produção própria)
Àquela hora metida madrugada adentro, a marginal fervilhava de automóveis, os seus ocupantes em perpétua deslocação num basto tempo de música, bebida e amigos. As curvas, a estreiteza das faixas de rodagem e os semáforos, daqueles que se ruborizam como que envergonhados pelas pressas, obrigavam a que a velocidade fosse reduzida. Tanto melhor. Assim podia observar os contornos esfumados de uma paisagem envolta pelo véu brumoso daquela agradável e morna noite de Outono. Em algumas enseadas lá em baixo, as ondas esmagavam-se de encontro à falésia, a luz dos candeeiros estilhaçando-se numa miríade de pontos, para se elevar até embeber o ar com um brilho amarelado e fantasmagórico. Abri os vidros e deixei que o cheiro mágico da maresia preenchesse todos os espaços do habitáculo. Deixei que penetrasse os meus pulmões e me purificasse a mente. Há algo de extraordinário no aroma a sal e algas; talvez faça vir ao de cima memórias de épocas remotas, gravadas profunda e indistintamente nos genes, que me asseguram que o mar foi o útero no qual toda a vida teve origem…
Imagem: Marginal
Música: Rádio Marginal (http://www.marginal.fm/)
Estava ali sentado ao sol, de olhos abertos e mente errante, recostado ao centenário e frondoso carvalho, aproveitando o ameno calor daquela manhã de Outono. No vale abaixo, a névoa ainda não se dissipara por completo, dando à paisagem um aspecto fantasmagoricamente esbatido, os detalhes diluídos como numa aguarela. Olhei para o terreno à minha frente, despido do trigo dourado que ainda algumas semanas antes ondulava ao sabor da brisa morna das tardes de Agosto. Retrocedi até outros anos, já distantes no tempo, em que as cepas, carregadas de grandes e doces cachos de diagalves, enchiam de cor toda aquela encosta de suave inclinação. Pareceu-me ouvir a vozearia dos vindimadores e vi-me ainda miúdo, a correr pelo carreiro acima com um cacho surripiado numa mão e um camião de brincar noutra, seguido de perto pelos companheiros de brincadeiras, para me ir sentar no mesmo banco improvisado onde me encontrava. Sorri… Há coisas que parecem nunca mudar. Definitivamente, as memórias agradáveis permanecem…
Imagem: Diagalves (www.fantasmablu.com/MVC-218S.JPG)
“O velho louco apareceu na aldeia, ao cair da tarde. Arrojava os pés pelo chão, fazendo dançar a poeira, e os cães ladravam à sua volta, enquanto avançava mecanicamente. Carregava nas costas todos os seus pertences, encafuados numa velha e esburacada saca de serapilheira, segura pela mão sã. Vergado pelo peso dos anos, com o braço doente inerte e a cabeça descaída, ia proferindo palavras sem nexo, entrecortadas por uma tosse tísica e violenta. Um sorriso demente perpassava a espaços os seus lábios cinzentos, meio escondidos pela barba rala e amarelecida pelo tempo, e a insanidade estava presente no olhar esbugalhado e penetrante que lançava aos miúdos que se metiam com ele. A sua presença já não era vista com desconfiança; há muito que as gentes daquela aldeia perdida na província sabiam que ele era inofensivo. Perdera a razão ainda jovem, quando um acidente o deixara às portas da morte, e desde que saíra do hospital não mais tinha deixado de vaguear, talvez em busca do futuro brilhante que o abandonara…”
V.A.D. em Algures.
Imagem: Velho (Original não alterado em: www.hulubei.net/tudor/photography/photos/O/l/Old-Man-1-500x750.jpg)
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