Quinta-feira, 8 de Fevereiro de 2007

James Blish

"Agora, já não havia qualquer som a não ser o crepitar da neve de metano, nem nada para ver senão uma embotada e débil lança de luz enevoada, ilusoriamente semelhante a uma aurora terrestre ou à coroa solar, a abrir o seu caminho desde além do rebordo de frio até à indiferente companhia das estrelas. Os anéis de Saturno estavam a erguer-se, tremeluzindo levemente na atmosfera azul-escura, quais estandartes de um exército espectral. A face do gigantesco planeta gasoso, vagamente riscada por tempestades insignificantes, como que a procurar recordar uma paixão de infância, inclinar-se-ia carrancuda para ela, (...) se não se pusesse muito em breve a caminho. (...) E então, quando se curvava para espetar a haste de um termopar no solo semelhante a um bolo de noiva, foi atingida nas costas, fazendo-a mergulhar no pesadelo. Juntamente com a inesperada escuridão, veio um profundo e ambíguo golpe emocional. Ambíguo, ainda que contendo algo de chocantemente familiar. Instantaneamente exausta, sentiu que se punha flácida e desprendida e a sua mente, à deriva em parte alguma, obscurecia-se e girava para baixo, mergulhando nos pântanos do transe. A longa queda abrandou o ritmo próximo dos limites da inconsciência, precariamente alojada na concha de um sonho, presa a uma escora mental situada no passado."

Excerto do conto Que Beleza se Houvesse Estandartes, de James Blish, um dos mais célebres e admirados autores de ficção científica, em cujas obras é normalmente subjacente uma profunda visão da humanidade, com todas as suas qualidades e defeitos. Viagem Pelos Universos, onde se insere esta história, é a versão portuguesa de Anywhen, uma colectânea dos seus melhores contos.

Imagem: James Blish (http://scifipedia.scifi.com/images/thumb/d/de/JamesBlish.jpg/150px-JamesBlish.jpg)

música: Many Meetings (Howard Shore)

publicado por V.A.D. às 01:35
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Terça-feira, 6 de Fevereiro de 2007

Edgar Allan Poe

"Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está assente se a loucura é ou não a mais elevada das inteligências, se quase tudo o que é glória, se tudo o que é profundidade, não provém de uma doença do pensamento, de um modo de ser do espírito à custa do intelecto geral. Os que sonham de dia têm conhecimento de muitas coisas que escapam aos que só sonham de noite. Nas suas visões brumosas, captam foragidos da eternidade e estremecem, ao despertar, por verem que estiveram à beira do segredo. Captam pedaços de algo do conhecimento do Bem, a ainda mais da ciência do Mal. Sem leme e sem bússola, penetram no vasto oceano de luz inefável, como se para imitar os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt Mare Tenebrarum, quid in eo esset exploraturi. Diremos, por conseguinte, que sou louco. Reconheço, pelo menos, que há duas condições distintas na minha existência espiritual: a condição de razão incontestavelmente lúcida, e a condição de sombra e de dúvida."

Excerto do conto Eleonora, de Edgar Allan Poe. Juntamente com Julio Verne, Poe é considerado um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica moderna.

Imagem: Edgar Allan Poe (http://richmondthenandnow.com/Images/Famous-People/Edgar-Allan-Poe.jpg)

música: Talisman (Air)

publicado por V.A.D. às 01:18
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Terça-feira, 30 de Janeiro de 2007

Mary Shelley

"Agora, todos os seres humanos que ele alguma vez viu estão envoltos em chumbo, são pó, todas as vozes que ele alguma vez ouviu estão mudas. O próprio som da lingua materna está mudado. Impérios, religiões, raças humanas iniciaram-se, provavelmente, ou desapareceram; o seu próprio património  (o pensamento é vão, contudo, sem ele, como se pode viver?) está afundado na goela sedenta que se escancara sempre, ávida para engolir o passado; as suas aprendizagens, os seus conhecimentos, estão provavelmente obsoletos. Os objectos, pensamentos e hábitos familiares à sua infância são agora antiguidades. Pergunta a si próprio onde estão os cento e sessenta volumes manuscritos que o seu pai compilara e que, enquanto criança ele contemplara com uma reverência religiosa; estão agora onde, onde? O seu companheiro favorito de brincadeiras, o amigo dos seus últimos anos, a encantadora noiva que lhe estava destinada; lágrimas há muito geladas fluem pelas suas velhas faces jovens abaixo."

Excerto do conto  Roger Dodsworth,  de Mary Shelley, criadora de Frankenstein. A imortalidade - será ela uma benção ou uma punição? - é um dos temas recorrentes nas obras desta autora nascida em 1797.

Imagem: Mary Shelley (www.noosfere.net/Ligny/Mary_shelley.jpg)

música: Edge Hill (Groove Armada)

publicado por V.A.D. às 01:52
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Domingo, 28 de Janeiro de 2007

Idade Média - parte 2

A única instiruição que não se desintegrou juntamente com o Império Romano do Ocidente foi  Igreja Católica, que acaba por vir a ter uma enorme influência sobre a vida, o pensamento e o comportamento do homem medieval. Responsável pela protecção espiritual da sociedade, mantém o que resta da força intelectual, especialmente através da vida monástica. Contudo, perdido o acesso aos tratados científicos originais da antiguidade clássica, as traduções em latim dessas obras, por vezes deturpadas, eram guardadas nos mosteiros, onde os religiosos viviam numa atmosfera que privilegiava a fé em detrimento das questões científicas. A educação era para poucos, pois só os filhos dos nobres estudavam, e era predominantemente religiosa e militar. Aprendia-se latim, doutrina católica e tácticas de guerra. A esmagadora maioria da população medieval era analfabeta e não tinha acesso aos livros, raros e copiados manualmente. A arte medieval foi assim fortemente marcada pela religiosidade da época, dado que as pinturas e os vitrais das igrejas eram, em conjunto com os sermões, uma das poucas formas de transmitir ao povo os ensinamentos religiosos.

Aproveito este post para recomendar um romance magistral de Umberto Eco, O Nome da Rosa, que viria a servir de base a um filme homónimo.

Imagem: O Rei David (Catedral de Canterbury, Kent, Grã-Bretanha) (www.historiadaarte.com.br/imagens/vitral.jpg)

música: After Time

publicado por V.A.D. às 23:17
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Sexta-feira, 26 de Janeiro de 2007

Medusa

"Levada pela corrente, agitada pelas vagas, violentamente arrastada por todo o poder dos oceanos, a medusa deriva na maré abissal. A luz atravessa-a, penetra-a a sombra. Levada, agitada, arrastada de qualquer lado para um lado qualquer, a medusa pende e oscila. No seu interior movem-se curtas e rápidas pulsações, tal como as vastas pulsações diurnas palpitam no mar que a Lua domina. Pendendo, oscilando, pulsando, esta que é a mais vulnerável e insubstancial das criaturas tem, para sua defesa, a violência e o poder de todo o oceano, ao qual confiou o seu ser, o seu movimento e a sua vontade.

Mas eis que surgem agora os inflexíveis continentes. Os seus baixios de areia grossa e as suas falésias de rocha erguem-se despidamente da água para o ar, para esse terrível espaço exterior de esplendor e instabilidade, onde a vida não encontra apoios. E agora, agora as correntes desviam e as vagas atraiçoam, quebrando o seu ciclo sem fim, para subirem num estrondo de espuma contra rocha e ar, quebrando... Que poderá a medusa fazer, toda ela produto do mover do mar, da segurança da água, da inquietude da corrente..., que poderá ela fazer na areia seca da luz do dia...?

Que poderá a mente fazer, cada manhã, ao acordar?"

Adaptação de excerto de O Tormento dos Céus, de Ursula K. Le Guin

Imagem: Medusa (http://terresacree.org/images/jellyfish.jpg)

música: Nothing is Good Enough (Aimee Mann)

publicado por V.A.D. às 01:45
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Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2007

Soldado da Névoa

"Esta noite não há lua nem estrelas, apenas uma chuvinha fina que é quase uma névoa. Estou sentado à porta da nossa tenda, onde a fogueira fumegante me concede luz suficiente para escrever. Diz-se que a lenha para as fogueiras escasseia, mas com uma centena de Fazedores de Cordas e mais de duzentos escravos ao seu serviço, Pasícrates terá toda a lenha de que precisar, por isso deito mais na fogueira sempre que as chamas começam a baixar.

Quando eu era criança, guardávamos os ramos podados das vinhas para queimar, lembro-me disso. Lembro-me de ouvir a minha mãe cantar, acocorada junto ao fogo para mexer uma pequena panela preta, olhando para mim enquanto cantava, para ver se eu a gostava de ouvir. Quando o meu pai estava em casa, fazia uma flauta de cana, e a flauta acompanhava a canção dela. O nosso deus era Lar, e o meu pai dizia que a canção da mãe fazia Lar feliz. Lembro-me de pensar que compreendia mais do que ele, e de como me sentia orgulhoso e dono de um segredo, porque sabia que Lar era a canção, e não algo fora dela. Recordo-me de estar estendido debaixo da pele de lobo e de ver Lar saltar de parede em parede a cantar e a brincar comigo. Tentava apanhá-lo e acordava, a esfregar os olhos, com a minha mãe a cantar ao pé da lareira."

Excerto de Soldado da Névoa, de Gene Wolfe, brilhante incursão no fantástico mundo da Grécia Antiga.

Imagem: Soldado Grego

música: Woke Up This Morning (Leonard Cohen)

publicado por V.A.D. às 02:09
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