“Uma e quarenta e seis. Senta-se em frente ao monitor, a música previamente seleccionada tocando baixinho, os sons calmantes circundando-o em ondas tão envolventes quanto o rumor das águas do mar oceano contemplado ainda há poucas horas num letargo próprio de uma tarde de estio. Sofria ainda, fustigado pelos anos-luz de espaço, flagelado pelas memórias, perseguido por uma existência pretérita que jamais poderia revelar, mas deixara os grandes tragos da satisfação amarga facultada pelas bebidas ardentes e devastadoras de garganta e estômago, a fisiologia aparentemente idêntica divergindo da dos nativos na tolerância à química da embriaguês, para passar a buscar refúgio nos subtis agrados proporcionados por uma natureza tão igual e dissemelhante, os pormenores dissentindo sem que contudo desobedecessem à lei universal expressa numa linguagem comum. E descobrira a melíflua aquietação trazida pela maresia num bafejo ancestral de vida, entendera por fim a razão de ser, aceitara perseverar numa perscrutação inacabável, a noite do desprazer iluminando-se gradativamente num engrandecimento da velha anima…”
“Havia ali qualquer coisa, uma vaga sensação de presença insinuando-se-lhe nas profundezas do subconsciente, um contorno desafiador materializando-se num quê tão indistinto quanto indizível, uma abstracta noção de perigo correndo-lhe espinha acima num involuntário eriçar de cabelos, a pele arrepiando-se num ligeiro tremor, os temores ancestrais vertendo-se em gotas de suor frio. Imobilizou-se. Um silêncio sepulcral, acentuado pelo fôlego contido, envolvia-o como um manto tão negro como a escuridão da cave bafienta onde ousara penetrar, e era quebrado apenas pelo pungente martelar descompassado do coração, o sangue carregado de adrenalina latejando nas artérias, a atenção a tudo o que se passava em seu redor redobrando-se numa desproporcionada tensão. Um vulto moveu-se, o raspar de garras no chão de pedra nua chegando-lhe ténue aos ouvidos, os seus olhos divisando o brilho amarelado e doentio de outros olhos, a entidade que invadira aquele lugar supostamente inexpugnável mirando-o num misto de escárnio e desafio. Num salto impossivelmente brusco, atirou-se à figura medonha que reconhecera de imediato, um grito animalesco rasgando-lhe a garganta pelo gume afiado do ódio transbordante. Detestava mortalmente aquele alter-ego…”
“Incapaz de notar a indolência que se voltara a induzir, adormentei, flutuando na doçura serena da semi-obscuridade prenha de pensamentos gastos e renovados, tão absurdos e tão inconsequentes como os sonhos que iam nascendo, esmaecidos pela luz suave que penetrava pela janela, o estore ligeiramente subido negando as trevas e contrariando a espessura do sono vagaroso que insistia em apossar-se de mim…
O mundo orbitava em torno de uma estrela amarela do tipo G, a poucos anos-luz da periferia da Via Láctea, os crepúsculos tingidos a cores quentes gerando uma beleza indizível, a noite afigurando-se rara de estrelas, o profundo negrume do céu manchado apenas pela nitescência das nuvens de Magalhães e do distante braço da espiral, curvado como uma cimitarra sobre o núcleo galáctico. Apesar da nudez e do vento que sabia frio, sentia-me singularmente aconchegado, a noção de que havia retornado a casa insinuando-se-me intensa e segura como uma verdade intuída, da minha boca saindo frases que sabia conhecer mas de que não recordava o significado…
Despertei abruptamente, o sussurro suplicante da voz dela no meu ouvido implorando que acordasse, que a estava a amedrontar com as palavras pronunciadas numa língua desconhecida, que devia estar a ter um pesadelo estranho, pois sorria enquanto tremores espasmódicos me atravessavam o corpo num desconforme símile de êxtase, que os olhos abertos e fixos no nenhures a faziam julgar-me em algum delírio patológico. Virei-me para ela e beijei-a. Assegurei-lhe que tinha sido só um sonho sem nexo. Mas, teria sido apenas isso…?”
V.A.D.
Imagem: Nuvens de Magalhães (www.astrosurf.com/antilhue/LMC55mmLRGB.jpg)
“Estava hirto sobre a lhanura do promontório basáltico, as pernas ligeiramente afastadas, os braços descaídos, a barba grisalha e as roupas negras flutuando ao vento, os olhos encovados e sem pestanejo contemplando sem ver a face plúmbea do oceano revolto que se esmagava em ondas furiosas de encontro ao alcantilado da rocha, uns quarenta metros abaixo, a espuma em grandes cachos elevando-se, desfeita em gotículas de maresia. Aves marinhas, brancas e pretas, descrevendo graciosas curvas no ar morno da tarde primaveril, fugiam dele com pequenos gritos, as suas alminhas tornando-se subitamente doloridas perante a austeridade daquela figura ascética. Talvez invocasse a tormenta eléctrica que se formava ao largo, os cúmulos-nimbos agigantando-se por sobre o horizonte, os primeiros relâmpagos enchendo de centelhas energéticas o céu baixo, o ribombar dos trovões acrescentando-se, impetuoso, ao rumor vibrante do mar embravecido. Talvez aplacasse alguma tempestade interior, as inquietudes e angústias que por todos perpassam encontrando apaziguamento naquele majestoso cenário, a sublime entrega à natureza acalmando algum desvario louco que se lhe tivesse apossado da mente. Talvez ambas as coisas…”
V.A.D. em Tormenta
Imagem: Trovoada (www.bigsurcalifornia.org/images2/lightning2a.jpg)
“O vento assobiava, incansável, o beirado com as suas saliências e reentrâncias fazendo vibrar o ar em movimento, os pequenos e invisíveis vórtices produzindo aquele som agoirento que antecipava a noite tempestuosa. A casa estava confortavelmente aquecida; a lenha, crepitando na lareira, ia-se desfazendo na quentura que enchia de placidez o ambiente, numa contradição artificiosa da natureza climática e do frio que instalara no seu âmago, o abismo negro da solidão envolvendo-o como se não mais pudesse regressar à companhia dela. Pousou o livro que não conseguia ler, as letras iludindo-o no tremeluzir das lágrimas que lhe inundavam os olhos, acendeu mais um cigarro e fixou-se no vazio que se lhe entranhava por todos os poros, num vão tentame de o desmentir.
Despertou subitamente, a frescura da água salgada caindo em pingos grossos sobre o corpo, o riso malicioso e brincalhão entrando-lhe pelos ouvidos adentro, as pálpebras semicerradas filtrando a intensidade do sol e ainda assim autorizando que o rosto dela se formasse na retina, a imagem dos cabelos húmidos e dos olhos sorridentes devolvendo-o à maravilha daquele dia de praia.
– Estavas a dormir?
Apercebendo-se do calor que sentia e do logro em que a sua mente o havia induzido, respondeu-lhe, antecipando o toque macio e refrescante da pele molhada de encontro à sua.
– Estava a ter um pesadelo. Deita-te, encosta-te a mim…!”
V.A.D. em Encosta-te a mim…!
Vídeo: Encosta-te a mim (Jorge Palma) (www.youtube.com/watch?v=Tu9HPz__3ys)
“Brinco com o anel rodando-o no anelar e adivinhando as inscrições que o breu não me deixa vislumbrar. O alinhamento dos planetas havia-me levado a Ta-netjeru, a “Terra dos Deuses”, fazendo-me embrenhar, a austral, nas águas do Nilo, quase até chegar a margens núbias. Num acto de requintada ironia, os astros haviam eleito uma noite em que a abóbada celeste se velara com um manto de densa bruma, passando num passo cuidadoso pelo Nectanebo, a sul do Templo de Ísis, e pelos dois enormes pórticos em “V” na semi-obscuridade. A primeira das seis cascatas lembrava a sua proximidade, com um ruído constante que criava a sensação de, mesmo aqui na ilha de Filae, as minúsculas gotinhas de humidade se fazerem sentir na pele, gelando-me. Dois pesados archotes assinalavam o primeiro pilone, iluminando em conjunto o imenso espelho de água que acrescentava no seu reflexo um pouco de magia à desértica fachada do templo.
Abeirei-me da sua superfície, mirando-me. Uma vida havia passado – havíamos percorrido o mundo, mostrando nos mais restritos círculos o engenho que havia ficado sem outro nome senão esse, envolvendo-nos em demandas científicas, conhecendo gentes em cada porto; tínhamos sofrido um pouco, sorrido um tanto e, sobretudo, havíamo-nos amado demais; fôramos companheiros, cúmplices e amantes até à sua morte – mas a minha face mal tinha sido tocada pelo tempo. Aparentemente partia como tinha conhecido Hiparco naquela noite em Alexandria, levando o mesmo anel no dedo, o astrolábio, aperfeiçoado, dentro da bolsa e o cabelo claro preso num gancho de âmbar e prata. Não havia sequer trazido o mecanismo, tinha-o doado aos sábios de Rhodes. Contudo, levava no olhar um novo sentimento que não deixaria jamais. Um familiar clarão iluminou a noite. Encaminhei-me vagarosamente para lá.
Teria saudades.”
Sophia
Pouco antes da Páscoa do ano de 1900, uma tempestade desviou de sua rota um barco grego de pescadores de esponjas, fazendo-o chegar à pequena ilha de Antiquitera, a meio caminho entre o Peloponeso e Creta. Quando mergulharam a sessenta e um metros de profundidade, encontraram os restos de um navio romano que havia naufragado por volta do ano
V.A.D.
V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (IV) (http://www.newyorker.com/images/2007/05/14/p465/070514_antikythera01_p465.jpg )
“Who dares to love forever?
When love must die
But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips (…)
And we can love forever
Forever is our today (…)
Who waits forever anyway?”
Obrigado, Sophia!
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. Segundos
. Minutos
. Horas
. Tortura
. Tormenta
. Blogs
. Abrupto
. Feelings
. Emanuela
. Sibila
. Reflexão
. TNT
. Lazy Cat
. Catinu
. Marisol
. A Túlipa
. Trapézio
. Pérola
. B612
. Emanuela
. Tibéu
. Links
. NASA