Quarta-feira, 18 de Junho de 2008

Ponto Zero

“Acordou a meio da noite, incapaz de conciliar o sono que o corpo pedia com a apreensão que teimava em insinuar-se a cada raciocínio, os pensamentos virando-se para estranhas especulações, uma aflitiva perturbação roubando-lhe a serenidade desejada, o esgotamento adensando-se, lodoso e negro. Abriu os olhos apenas para nada ver, a escuridão informe envolvendo-o num frio imaginário, o calor da noite estival negando-se a invadir-lhe o âmago gélido de espanto. Basto não lhe era o tempo, nenhum lugar se lhe afigurava adequado naquele limbo absurdo e caótico entre universos. Sentira-se capaz de atingir a mais absoluta das verdades, a solução última para as carências afigurara-se-lhe tão tangível quanto os pares de partículas em perpétua génese a partir do nada. E tudo se dissolvera num afastamento irremediável, como se um simulacro do efeito Casimir se tivesse insurgido contra esse contacto com a mais profunda e inextinguível das energias, o desencanto do descaminho abalando-o, a noção de insuprível falha fazendo-o sentir-se culposo. Cerrou as pálpebras, num deliberado esforço. A seu lado ela dormia, a cadência suave da sua respiração actuando como um soporífero, a placidez regressando paulatinamente até ao esquecimento das horas ausentes…”
V.A.D. em Ponto Zero
Imagem: Efeito Casimir (http://apod.nasa.gov/apod/image/0612/casimirsphere_mohideen.jpg)

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Quarta-feira, 7 de Maio de 2008

Sequência Principal

Nascença, a fragilidade do ser aconchegando-se no peito da progenitora, a dependência absoluta transformando-se paulatinamente na autonomia crescente dos anos que passam, plenos de novidade e prodígio, as descobertas sucedendo-se numa esfusiante cadência feita de brincadeiras e percepções, o mundo crescendo num permanente alargar de horizontes… Experimentação, as inúmeras possibilidades mostrando-se-lhe num caleidoscópio de simetrias multicolores e variáveis, a juventude avocando a natural irreverência de quem crê tudo poder... Emancipação, a dureza desafiadora das responsabilidades assumidas afigurando-se-lhe estimulante, as escolhas sendo feitas em impulsos, as emoções manifestando-se na indizível doçura de um amor consequente e prolífero… Domínio, o doce sabor do poder e dos feitos, a preciosa negação da insondabilidade dos mais profundos mistérios, a férrea vontade de caminhar no sentido da descoberta, a inacabada aprendizagem conferindo-lhe a convicção de pouco saber, o pouco que sabe parecendo-lhe insuficiente, a apressada procura de colmatar as lacunas fazendo-o sentir que o tempo escasseia… Decrepitude, a imponderabilidade das noções absurdas, a trémula incerteza do que há para vir, a irrealidade dos raciocínios impérvios assomando-se, estranha e incoerente, emaranhando a existência nos fios pegajosos da demência, ossos e músculos acusando o ónus das décadas… Decessa, nada mais que o vazio, a individualidade evolando-se em memórias que não passam de resíduos etéreos daquilo que fora, a identidade dissipando-se no irrevogável substrato do tempo, a espuma fantasmagórica da sua mente ficando somente registada nas palavras insistentemente grafadas em formato digital, até que o próprio suporte se desfaça…

Imagem: Mãos (www.europarl.europa.eu/eplive/expert/photo/20071107PHT12721/pict_20071107PHT12721.jpg )


publicado por V.A.D. às 03:00
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Quarta-feira, 9 de Abril de 2008

Perceber

“Não quero ter pressa. Quero ser capaz de passar pelo tempo como se ele fosse minha propriedade, o andar decidido e a cabeça erguida assinalando aquilo que sou. Quero parar pelo caminho num reacender de memórias, a renovação de quem sou sendo feita pela condensação num momento inacabável daquilo que é intemporal. Quero olhar o futuro em todas as direcções, escolhendo, mesmo que o erro seja manifesto, um passo atrás não representando mais do que a consciência de que o desacerto é parte do inacabável processo de aperfeiçoamento. Quero saber da alegria de reencontrar velhos amigos, perdendo-me em conversas sem prazo delimitado, comprazendo-me com as vivências, assimilando as experiências, aprendendo que pouco sei. Quero admirar a subtileza de pequenos gestos, a gratidão interpretando a reciprocidade e não simulando o pagamento daquilo a que se não deve atribuir um preço. Quero partilhar-me, as minhas faces desiguais sendo mostradas sem dissimulações ambíguas e artificiais. Quero aperceber-me das peculiaridades de mim mesmo para almejar o entendimento dos outros. Preciso, para tudo isso, de me alienar do constante tiquetaque que me enche, ouvidos e mente, de uma ânsia abstrusa de chegar a lado nenhum…!“

V.A.D.                                 

Imagem: Espelho (http://img.photobucket.com/albums/v160/darkloud/MirrorHand2.jpg)


publicado por V.A.D. às 02:00
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Terça-feira, 25 de Março de 2008

Retorno

                   

“Viajo pelos dias sem tempo, em vislumbres de eternidade, tendo no futuro um aliado, não esquecendo o passado, vou em busca da verdade. Sou diáfana duplicidade, pensamento etéreo e esfumado, imaginação de um simples momento, furacão destruidor e violento ou pacífica serenidade. Nunca havia viajado assim, sentado na nuvem que corre, em direcção ao infinito. Percebo a vida, calo o grito: antes de renascer, tudo morre… Às artérias, o sangue acorre, termina a ilusão, acaba-se o mito. (No espelho de quem sou vejo a imagem de mim.) Ao meu corpo regresso por fim; é a unificação que ocorre!”

V.A.D. em Retorno

Vídeo: Viagem da Mente (Place 8 – Kattoo) (www.youtube.com/watch?v=Lh-vrNMph9c)


publicado por V.A.D. às 02:17
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Domingo, 23 de Março de 2008

Clepsidra (III)

“Um silêncio abafado desliza pela minha mente, num inconsciente êxtase de uma noite milenar, o sonho mudo despejando uma torrente de imagens, a princípio confusas e indistintas para se tornarem tão vívidas e reais que juraria poder tocá-las. Vagueio pelos santuários de Karnak, a lua cheia iluminando os meus passos silentes, obeliscos e esfinges ladeando uma avenida imensa, as monumentais paredes do templo de Amon-Rá erguendo-se nos céus egípcios como escarpas, os pilones desenhando-se, altivos contra o fundo estrelado do firmamento. Avanço, incapaz de conter a curiosidade que me faz afoito, um verdadeiro bosque de colunas monumentais afilando-se, apesar de maciças não dando a impressão de peso, a pedra cinzelada escrevendo, a todo o perímetro, a memória de um passado ainda por esquecer, petrificados rolos de papiro sustentando o peso do tecto que se eleva mais de duas dezenas de metros acima do solo pavimentado. Ao fundo, um hectómetro separando-me dele, um vulto destaca-se, emproado, na contraluz de dezenas de archotes, o séquito escutando a prelecção, a desmesurada sala hipóstila servindo de cenário a alguma cerimónia real. Detenho-me, embriagado pelo incenso que enche o ar de um aroma doce, inebriado pela fascinação daquele momento em que Sethi I se revela perante a incredulidade daquilo que presencio, a clepsidra enchendo-se, em vez de verter a água do tempo no solo seco dos séculos…”

V.A.D. em Clepsidra

Imagem: Sethi I (http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f3/Abydos_sethi.jpg)


publicado por V.A.D. às 15:00
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Sexta-feira, 14 de Março de 2008

O tempo...

                  

“…é algo de infinitamente profundo e intrínseco, a natureza precisando de uma medida que quantifique a negação da própria eternidade...”

V.A.D. (s)em Tempo

Video: The Flow of Time – In a Cradle (Rentrer en Soi) (www.youtube.com/watch?v=eaKP9QbDeGM) 


publicado por V.A.D. às 03:15
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Quinta-feira, 13 de Março de 2008

Clepsidra (II)

 

“O crepúsculo fora singularmente belo, o céu abaixando-se sobre o deserto como um manto de fino linho, a tingidura feita de tonalidades quentes contrastando com a imprevista frescura da esplanada, os mezze saboreados com a impossível mas espantosa sensação de deleite, o palato sendo estimulado pela deliciosa combinação de sabores, os distintos ingredientesrenovando a experiência de uma gastronomia tão dissemelhante. Mashi acompanhado de zythum gelada, a noite trazendo o silêncio das horas de contemplação, a minha mente deixando-se levar a um outro tempo, a um lugar abastado na fímbria da aridez, a erosão dos séculos que passam indeléveis não conseguindo apagar as marcas de esplendor de uma civilização antiga e fantástica, medido pelas faraónicas obras e pela riqueza cultural e material. Maravilho-me com os feitos de engenharia, fico assombrado pela organização e logística necessárias à construção de tão colossais monumentos, templos e pirâmides representando o auge da sapiência ancestral. Interrogo-me sobre que fabulosos conhecimentos se terão perdido, a geometria e a astronomia precisando de um longo período de anactesia para o regresso ao esplendor daqueles tempos. Fecho os olhos e vejo-me em Karnak, às margens do Nilo, no Alto Egipto, as imagens formando-se expressivas e plenas de singular realismo, a clepsidra parecendo estar ainda inteira de água, o tempo tendo sido parado só para que eu pudesse admirar a magnificência de Ipet-sut…”

V.A.D. em Clepsidra

Imagem:

música: At The River (Groove Armada)

publicado por V.A.D. às 03:13
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Segunda-feira, 10 de Março de 2008

Clepsidra (I)

“Olhei demoradamente através da translucidez do vidro, a janela do hotel virando-se para o deserto que se assenhoreara da vastidão, quilómetros e quilómetros esvaziados de vida assemelhando-se à inanidade de mim mesmo. As inumeráveis dunas, enchendo a paisagem fastidiosa do meu descontentamento, elevavam-se como pirâmides caoticamente desfeitas, os dias sucedendo-se na cadência lenta das alvoradas tépidas e das tardes infernais, o trabalho bem pago progredindo de acordo com o previsto, a chuva ausente havia meses levando-me, pelo crepúsculo, ao delírio onírico de rios transbordantes e de gotas geladas, caindo do céu de Março em manhãs húmidas e cinzentas de latitudes médias. Virei o meu olhar para a imagem impressa na brochura, a quimérica clepsidra de Karnak transportando-me até aos dias de glória e prosperidade daquela terra agora tão diferente, Amen-hotep III governando aquele país antigo, o nono faraó da décima oitava dinastia patrocinando a contagem de algo tão precioso quanto a água, a vã tentativa de o dominar o tempo levando à construção do dispositivo primevo, tão distante dos relógios de césio quanto apartada de mim estava a felicidade. Mas o tempo fluía indómito e imparável, o líquido cristalino vertido pelo orifício de uma clepsidra imaginada declarando o avizinhar do momento em que retornaria a casa…”

V.A.D. em Clepsidra

Imagem: Clepsidra de Karnak (www.arqueoegipto.net/articulos/egipto_tematico/calendario.htm)

música: Time (Pink Floyd)

publicado por V.A.D. às 02:32
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Domingo, 9 de Março de 2008

Sou...

                      

Ao fim da noite, sou silêncio e luz

Vento siroco, radiosa alvorada

Sou princípio e fim da estrada

Sou verbo que encanta e seduz

Audácia firme ou vã bravata

 

Rio de águas calmas, rugido de catarata

Intenso brilho, ténue reflexo de luar

Sou ilusão etérea, profundo mar

Sou poção que rejuvenesce ou mata

Símbolo cinzelado, audível fonema

 

Enigma complexo, solução de problema

Física de partículas, matemática pura

Sou esquisso de alguém, surreal pintura

Sou certeza absoluta ou irresolúvel dilema

Viagem sem revés, aventura perigosa

 

Fleuma indizível e agitação buliçosa

Sopro de vida, infalibilidade da morte

Sou azar profundo, amplíssima sorte

Sou vibração de corda, melopeia silenciosa

 

Humm…

Dia soalheiro, existência maravilhosa!

 

Imagem: Nascer do Sol (http://apod.nasa.gov/apod/image/sunrise_apollo.gif)

música: Sun Is Shining (Bob Marley)

publicado por V.A.D. às 02:24
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Sexta-feira, 22 de Fevereiro de 2008

Símbolos

                   

“A mente cedeu perante a magnitude ininteligível, a complexidão dos cálculos transformando-se num confuso turbilhão de símbolos e algarismos, a linguagem matemática assumindo uma fantasmagórica e indistinta forma, o raciocínio demitindo-se da árdua tarefa de subjugar a inacreditável lógica das formulações. O silêncio do cansaço invadia-o lentamente, as pálpebras negando-lhe a vontade de permanecer acordado, o corpo assumindo a derrota infligida por horas esquecidas de concentração absoluta. Debateu-se por mais um pedaço de vigília, amaldiçoou-se por não ser capaz de continuar, a verdade insinuando-se ali tão perto… Deitou a cabeça sobre os braços, almofadas improvisadas sobre o incomum leito em que a sua secretária se havia transformado naqueles últimos meses de esfuziante promessa, a derradeira revolução da física assomando-se-lhe no espírito como a realização de um anseio velho de séculos. De imediato, o céu escuro e pesado do sono abateu-se sobre ele, esmagando os sonhos que teimavam em despontar, pequenas mas espaventosas faíscas enchendo-lhe a cabeça de um ruído branco que o aconchegava numa melodia de embalar. A noite esvaziou-se de horas, o tempo fugiu-lhe apressado e a alvorada, anunciando-se radiosa, trouxe-lhe um despertar bocejante…”

V.A.D. em Símbolos

Vídeo: A Beleza da Matemática (www.youtube.com/watch?v=sb5xy86ooqA)


publicado por V.A.D. às 03:10
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