Sei os símbolos e o que eles significam, mas não conheço os sons que lhes correspondem. Vejo imagens gerando-se na minha mente, a cada ideograma que se forma na retina, sem que perceba o que representam. Sinto na pele o toque frio do metal, sem que esteja cônscio da sua dureza. Ouço a música que baila nos meus ouvidos e não entendo a sua cadência. A mão insubstancial desenha espirais no ar, quais vórtices de excelsas maravilhas, e nada conheço de geometria, embora diferencie facilmente o tempo das restantes coordenadas. Não me importo de estar ausente de mim, as dimensões estendendo-se até ao infinito de uma singularidade, a multiplicidade resumindo-se a tudo e a coisa alguma, num absurdo e risível paradoxo. Desejo-me revérbero de um simples pensamento, eco da profusa energia contida em um grama de matéria, fluxo de neutrinos gerados em decaimentos beta no coração das estrelas, o negrume da noite pousando na escuridão do sono, o sonho administrando uma realidade que não sei bem o que significa. Quero-me acordado, mas não me apetece acordar. A felicidade não é mais que o ajuste perfeito à ambiência singular em que se vive…
Imagem: Sonho Surreal (www.art.eonworks.com/gallery/surreal/dream_image-200203-SM.jpg)
Estamos tão acostumados ao facto de os nossos sonhos serem acompanhados de imagens visuais que é difícil imaginá-los de outra maneira. Mas, e os cegos? Com que sonharão eles? Os relatos na primeira pessoa indicam que a capacidade de sonhar não depende da capacidade de ver, ou mesmo de ter visto algum dia. Sonham da mesma maneira que percebem o mundo, através de sons, de texturas, de cheiros e de paladares. Produzem-se sensações idênticas às dos sonhos visuais e os pesadelos são igualmente perturbadores. Os que não são cegos de nascença parecem ser capazes de se lembrar do sentido perdido e o seu cérebro introduz nos sonhos imagens inventadas, embora baseadas em pessoas ou paisagens já vistas. Os sonhos não são assim uma simples tradução nocturna daquilo que vemos. Eles são criações da mente de quem dorme, reciclando impressões registadas pelos sentidos disponíveis e formando, por vezes, uma narrativa tão, tão coerente…!
Imagem: Sonho
Há trinta milhares de anos, nas profundezas da actual gruta de Chauvet, em França, o Homo Sapiens revelou um incrível talento. As formas que desenhou sobre as paredes de calcário denotam uma formidável matriz artística, um conhecimento íntimo da Natureza e do movimento, e uma capacidade inovadora e extraordinária de representar, não só o mundo que o rodeia, mas também aquele que é capaz de imaginar. Aquele que é o mais antigo traço conhecido de expressão pictórica é manifestamente o fruto de uma evolução que tem raízes nos ainda mais ancestrais membros da espécie humana, ela mesma filha da história da vida na Terra, velha de quatro milhões de anos. A vida deu à luz criaturas com a habilidade de apreender as realidades evidentes e, acima de tudo, capazes de assimilar e de transmitir aos seus semelhantes os impalpáveis pormenores de uma existência feita também de raciocínios abstractos. Este comportamento desconcertante baseia-se num fenómeno que não cessa de fascinar: a consciência.
Imagem: Chauvet (www.dinosoria.com/hominides/chauvet.jpg)
Tantas e tantas vezes nem de nós sabemos. Temos apenas vislumbres fugazes da nossa complexidade, e cada gesto, cada olhar, cada movimento que fazemos, pode nem depender do nosso pensamento consciente. Temos a ilusão do controle, mas muitas vezes quem nos rege são as partes mais antigas do nosso cérebro, donas dos instintos e das emoções. Tantas vezes agimos impensadamente, e os resultados dessa acção podem assumir aspectos tão diversos... A racionalidade, que gostamos de ter como certa, é jovem sob o ponto de vista evolutivo e revela-se muitas vezes insipiente e titubeante; nem sempre a lógica racional empregue assenta sobre bases sólidas, podendo criar nós no fio do pensamento, tornando-o cheio de irregularidades, dificultando a compreensão do eu e dos outros. Por outro lado, a análise que fazemos dos dados que possuímos mostra-se por vezes certeira e julgamos, temporariamente, que somos detentores do dom da infalibilidade… Podemos ser babilónios, guiados muito pelos instintos e pela intuição, seres errantes ao sabor das vagas dos sentidos e das emoções, olhando apenas o presente, ridicularizando o passado e não prestando atenção ao futuro. Podemos ser gregos, interessados na ordem dos fenómenos, atraídos pelo aparato lógico e olhando a cronologia como um mapa que nos direcciona num tempo que há-de vir e que se torna presente a cada instante. Creio que as diversas facetas da personalidade de cada um coexistem e complementam-se, transformando a existência num desafio permanente, numa inquietude serena, ao invés de se limitar a uma pasmaceira acéfala.
Imagem: Existência (http://neosurrealism.artdigitaldesign.com/)
Sem passado não se antecipa o futuro. Não há futuro sem memória. A actividade cerebral que decorre quando especulamos sobre o futuro é muito similar àquela que decorre quando recordamos eventos passados. Para que possamos imaginar aquilo que irá acontecer, necessitamos de um contexto por nós conhecido. Tomemos como exemplo o nosso próximo aniversário. Só conseguimos ter uma ideia de como vai ser porque recordamos o evento do ano anterior. Assim, o cortex frontal, centro da antecipação, associa-se ao hipocampo, centro da memória, para conjecturar os acontecimentos que hão-de vir. Isto explica o motivo pelo qual as crianças com menos de 5 anos e as pessoas que sofrem de amnésia revelam tantas dificuldades nesta matéria. Os ontens ajudam a construir os nossos amanhãs...
"Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana"
Marguerite Yourcenar
Imagem: Mente (www.mirpod.com/IMG/arton2039.jpg)
Fonte: Science & Vie
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. Sonhar
. Cognição
. Blogs
. Abrupto
. Feelings
. Emanuela
. Sibila
. Reflexão
. TNT
. Lazy Cat
. Catinu
. Marisol
. A Túlipa
. Trapézio
. Pérola
. B612
. Emanuela
. Tibéu
. Links
. NASA