Descia o trilho empedrado, sulcado pelas passadas de incontáveis pés, erodido pelas inumeráveis chuvas de muitos Invernos e parecia-me estar a avançar sobre uma ruína de ossos esbranquiçados pelo sol de séculos sucessivos. Na margem do ribeiro, por onde a água havia há muito deixado de correr durante todo o ano, ainda se viam as lajes onde os trapos eram esfregados, enquanto as línguas viperinas lavavam roupa suja. Dir-se-ia que o velho casebre estava há muito abandonado, as paredes desnudas mostrando as pedras irregulares cuidadosamente empilhadas numa harmoniosa confusão, escurecidas pela inacabável passagem das estações. O telhado, vergado pelo peso dos anos, fazia lembrar uma tela castanho-escura e irregular, cheia de salpicos amarelados, os líquenes e tufos de erva conquistando aquele território aéreo. Da fuga, encarvoada pela fuligem, soltavam-se rolos de fumo e no ar pairava o agradável cheiro da madeira em combustão. Antecipando as palavras que tão bem conhecia, “pode entrar, a porta ‘tá aberta!”, bati na vidraça do postigo. Um rosto, cheio de rugas e tisnado pela dura vida no campo, abriu-se num sorriso de rara espontaneidade. Entrei e dei-lhe um abraço caloroso. A fumaça, que enchia a casa e a alma do velho, começou de imediato a dissipar-se, escorrendo para a tarde fria através da porta entreaberta.
Imagem: Casebre (www.gulfislandsguide.com/photos-gabriola/images/stonehouse.jpg)
Da água, o meu olhar voltou à água. O reflexo mostrava agora um sorriso no rosto. Desaparecera, como que por artes mágicas, aquela expressão indecifrável de cansaço, que me tornava semelhante a uma estátua, mas guardei-me num silêncio de estrebuchante tranquilidade. Estava perdido num labirinto de rememorações e fazia de conta que havia retornado aos dias de antanho, quando a brincadeira era o meu mundo, edificado com a mansa simplicidade das horas despreocupadas. Tantas vezes aquele tanque havia sido um oceano imenso, onde os barquinhos, construídos de madeira e cortiça, capitaneados por lendários piratas e oficiais ao serviço de reis imaginários, se viam envolvidos em duríssimas batalhas navais. Tantas vezes havia regressado, em choro, a casa da minha avó, a roupa encharcada pela parvoíce implicante do meu irmão, que achava engraçado molhar-me… A chuva chegou sem aviso, num aguaceiro ensolarado, os pingos grossos e frios batendo com força nas pedras irregulares da parede do velho poço, à beira da ruína, depois de anos de desuso. Levantei os olhos e fui atingido bruscamente pela constatação, evidente e agradável, de que a aldeia das minhas raízes, embora jamais tivesse achado os prazeres da cidade, continuava a ser um bálsamo para a minha mente.
Imagem: Poço (produção própria)
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