Domingo, 30 de Setembro de 2007

A Ilha

“Sentia por todo o corpo um rumorejar profundo, um murmúrio quase inaudível de muito baixa frequência, e a sua origem fundamental, instintivamente pressentida, provocava em mim uma inquietude surda e angustiante de tripas em revolvimento, a antecipação insofismável de um evento poderoso e potencialmente catastrófico… E o silêncio, quase perfeito, amplificava aquela sensação de apreensão que me envolvia e sufocava… Subitamente, um jacto sinistramente escuro rasgou as águas em direcção ao céu azul, seguido por uma sucessão incrivelmente rápida de muitos outros, que se iam salpicando de pontos de um branco imaculado, que logo se dilatavam para formar rolos de fumo. Em alguns segundos, a Grande Arquitecta conseguira mudar a paisagem: do mar fervente erguia-se agora uma torre colossal, com centenas de metros de diâmetro e um quilómetro de altura, fantasticamente móvel, torcida de volutas em turbilhão, rasgada por repuxos renovados sem cessar, fendida por explosões simultâneas, espalhadas como os dedos abertos de uma mão imaginária. Até onde a vista alcançava, o vento estendia um véu imenso e negro de cinzas finas, que se entranhavam em todos os poros e dificultavam a respiração. A erupção submarina iria continuar por alguns meses, depositando no leito do oceano toneladas de material arrancado às entranhas da Terra, até que uma nova ilha surgisse…”

V.A.D. em A Ilha

Imagem: Erupção Submarina (http://www.damninteresting.net/content/surtsey_eruption.jpg)
música: Volcano (Damien Rice)

publicado por V.A.D. às 01:24
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Sábado, 29 de Setembro de 2007

Derrocada (VIII)

“Lá fora, o vento começou a soprar, forte e zangado, trazendo consigo nuvens feias de tempestade. A realidade é tenebrosa e sinto-me a desfalecer. Enquanto escrevo estas palavras, tenho a nítida sensação de que não haverão outras oportunidades de transcrever os meus pensamentos, pois acredito que desta vez a loucura, ou o que quer que lhe chamemos, veio para se instalar definitivamente na minha existência. Encharco-me em suores frios; o meu corpo quer deixar de obedecer às ordens que o meu cérebro ainda consegue emitir. Ondas de tristeza e de revolta trespassam-me como gumes frios e afiados. Olho pela janela e vejo os céus plúmbeos sobre o mar encrespado; temo que o azul de toda uma vida seja substituído pelo negrume…

 

Epílogo

Algures na cintura de asteróides, entre Marte e Júpiter, camuflada entre as centenas de objectos celestes, a nave centauriana continuava a sua órbita em torno do Sol. No seu interior, as figuras esguias e cinzentas dos seus tripulantes verificavam metodicamente as informações que lhes vinham chegando. Indetectáveis, os enxames de nanomáquinas feitas de carbono e silício, continuavam a sua tarefa, conforme o alto comando havia planeado. Um a um, os cérebros de milhões de pessoas iam sendo atacados inexoravelmente… A derrocada da humanidade estava cada vez mais próxima, embora ainda houvessem alguns anos de espera pela frente. Não era relevante: tempo era coisa de que dispunham.”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Cinturão de Asteróides (http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/foto/0,,10964957-EX,00.jpg)

música: Mars, The Bringer Of War (Holst)

publicado por V.A.D. às 01:41
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Sexta-feira, 28 de Setembro de 2007

Derrocada (VII)

“Contei-lhe detalhadamente o que havia sucedido, expliquei-lhe que me sentia tão esgotado como num dia de ressaca, e que a minha voz reflectia isso mesmo… Manifestei-lhe o meu espanto por não ter sido definitiva, a ocorrência. Falei-lhe da esperança que havia nascido no meu espírito, pela possibilidade de aquilo estar, de alguma forma, a enfraquecer. Sou um optimista por natureza, e é também verdade que o derrotismo não leva ninguém a lado nenhum. Contudo, sei quão terrível pode ser a confiança cega no improvável. Conversámos até que os assuntos se esgotaram, ficou no ar a férrea vontade de nos voltarmos a abraçar e, sem desligar, passei a chamada à minha mulher, que entretanto havia recobrado os sentidos. Vi-lhe o sorriso no rosto, vi-lhe o olhar luminoso e senti como se fosse minha, a satisfação dela. Ouvi-a rir-se com uma vontade que há muito não lhe sentia. Resolvi registar estes acontecimentos; o que sei fazer não passa de um pálido retrato de algo que tem enegrecido um futuro que poderia vir a ser brilhante…”

V.A.D. em Derrocada.   

Imagem: Mãos (www.joannayates.co.uk/users/1259/25229_Hands%203.jpg)
música: Numb (Portishead)

publicado por V.A.D. às 02:21
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Quinta-feira, 27 de Setembro de 2007

Derrocada (VI)

“Quando recobrei os sentidos, todos os músculos do meu corpo protestavam, doridos, como se tivesse andado à pancada, e a minha cabeça parecia querer explodir. Ergui-me com dificuldade, o meu corpo feito gelatina, mas a vontade a sobrepor-se, e vi-a ainda inconsciente, respirando pausadamente, como se estivesse a meio de um sono sereno e despreocupado. Reuni as poucas forças de que dispunha e, pegando-a ao colo, arrastei-me até ao interior fresco da casa. Deitei-a no sofá, com a cabeça apoiada no meu colo e voltei os pensamentos para o meu filho, no estrangeiro havia já algum tempo. Procurei o telemóvel no bolso dos calções e a custo marquei o número, lutando para não falhar nenhuma tecla. Parecia que os meus dedos se recusavam a obedecer às ordens, tal era a violência com que tremiam. Esperei ansiosamente que a voz dele ou a da namorada se fizesse ouvir.

- Olá, pai!

- Oh, meu filho, que alegria me dás! Estava com um receio terrível que aquilo já aí tivesse chegado! Como estás? E a Inês? Por favor, diz-me que estão bem!

- Pai, estamos bem. Que tens tu? A tua voz soa estranha…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Dor de Cabeça (www.doriandenes.com/images/linearinterpretations/headache.jpg)

música: Mad World (Gary Jules)

publicado por V.A.D. às 02:05
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Quarta-feira, 26 de Setembro de 2007

Derrocada (V)

“- Vem, vamos para casa. – Dei-lhe a mão e subimos lentamente a escada que nos conduzia ao pátio da vivenda recém-adquirida. Virei-me e olhei de relance para o mar. Esse continuaria a ser o que sempre fora…

Repentinamente, uma densa e pegajosa neblina vermelha abateu-se sobre mim, toldando-me os sentidos, e parecia haver algo no próprio ar que respirava, um cheiro acastanhado de putrefacção, que me dificultava a respiração e me enfraquecia. Uma inquietação agoniante, como se algo passasse sobre as minhas costas, como se um milhão de vermes com mil patas corressem espinha acima, espinha abaixo, apoderou-se de mim. A loucura erguia uma cabeça medonha e ria-se. Tive vontade de berrar, de rasgar a garganta com um grito louco que a pudesse afugentar. Nem um gemido, apenas um esgar. Senti-me afundar num infecto lamaçal de irracionalidade, e nada do que via ou escutava fazia sentido. Desmaiei e devo ter ficado inconsciente por algumas horas, que me pareceram séculos. Afinal, o tempo é tão, tão subjectivo…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: A Face da Loucura (www.themoonlitroad.com/punkin/images/pumpkinface.jpg)
música: Insane In The Brain (Cypress Hill)

publicado por V.A.D. às 01:37
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Terça-feira, 25 de Setembro de 2007

Derrocada (IV)

“Não queria pensar naquilo, não me podia deixar envolver pela melancolia arrasadora que se infiltrava em cada célula do meu corpo, de cada vez que tentava vislumbrar o sombrio futuro que parecia certo… Despertei das lucubrações em que me deixara cair, quando ela me chamou.

- Vem, não fiques aí tanto tempo. Não gosto de te ver assim; sabes que não adianta nada pensar naquilo que há-de vir. Não podemos fazer nada, a não ser esperar que não nos atinja…

- Eu sei, tens toda a razão, mas não sou capaz de o evitar. Já pensaste que tudo o que a humanidade construiu pode vir a ser apagado em tão pouco tempo?

- Não acho que as coisas venham a ser apagadas; o que vai deixar de existir é a continuidade da nossa espécie, enquanto possuidora de inteligência. Parece-me que vai regredir até à idade da pedra e talvez volte a passar por tudo outra vez…

- Achas que será uma espécie de recomeço?

- Não sei, não sei nada… – Irrompeu num choro silencioso, de desespero e de impotência perante a situação. Aproximei-me e abracei-a com força e, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelo rosto, chorei também…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Abraço (www.benettontalk.com/hug.jpg)

música: Crying (Roy Orbison)

publicado por V.A.D. às 01:45
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Segunda-feira, 24 de Setembro de 2007

Derrocada (III)

“Nos primeiros meses, milhares de refugiados aportaram ao velho continente, procurando desesperadamente fugir daquilo que se crê inevitável; teme-se que não haja lugar no mundo onde uma pessoa se possa considerar a salvo. A maré da alienação havia já submergido os Açores e, num avião proveniente da Madeira, mais de metade dos passageiros chegaram com os primeiros e evidentes sinais de loucura. Quanto tempo me restaria, antes de me tornar uma besta insensível e desprovida de inteligência? Quanto tempo teria ainda para me deliciar com as madrugadas silenciosas e com os crepúsculos dourados? Que aconteceria à fina teia de raciocínios e à capacidade de abstracção que fazem de nós o que realmente somos? Deixaria de me emocionar com a beleza e de me revoltar com a injustiça? Deixaria de perceber o tórrido fluir do amor e de me refrescar na aveludada sensação de uma carícia? A torrente de perguntas sem resposta era tão ensurdecedora como uma verdadeira e majestosa cascata, e abatia-se sobre mim com a força de mil rios…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Inteligência (http://sergecar.club.fr/images/intelligence.jpg)

música: Morning Has Broken (Cat Stevens)

publicado por V.A.D. às 01:03
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Domingo, 23 de Setembro de 2007

Derrocada (II)

“Os relatos assinalavam uma desesperante irracionalidade por parte dos habitantes, que se comportavam como se tivessem regredido até aos mais arcaicos tempos do Homem. Deixaram de falar; a comunicação resumia-se a um ininteligível conjunto de urros e grunhidos, e o olhar… Aquele olhar insano de quem parecia não saber onde estava nem quem era… Lembro-me da reportagem da CNN, como se a tivesse acabado de ver agora, e ainda sinto aquele arrepio visceral e pungente, que me parece revolver as entranhas e enregelar a mente, sempre que à minha memória retornam aquelas imagens. Alguns dias depois, todo o sul dos Estados Unidos e parte da América Central estavam já atolados no lodo da loucura. Muitas e similares informações se sucederam, até que, pouco a pouco, à medida que a epidemia crescia em círculos concêntricos, se tornaram cada vez mais escassas. Por fim, todo o continente americano deve ter caído no mais profundo caos, pois nada mais restou das comunicações a não ser o ruído branco da estática, como um muro além do qual nada se pode enxergar…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Demência (www.alzheimermed.com.br/imagens/demencia%5C01.jpg)

música: Space Dementia (Muse)

publicado por V.A.D. às 00:01
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Sábado, 22 de Setembro de 2007

Derrocada (I)

“A oeste o sol brilhava, agradável e quente, os seus raios cintilando sobre as águas azuis, salpicadas pelo branco da espuma. O mar falava no tom confiante e profundo que sempre me acalmava; as ondas insinuavam-se na areia, num incansável e hipnótico movimento, enquanto o fresco perfume da maresia me envolvia, qual capa aconchegante. Por instantes esqueci que algures, do outro lado do Atlântico, a ameaça se estendia com um vírus, destruindo paulatinamente a civilização, exaurindo daqueles que eram afectados todas as características de humanidade. Ninguém percebia realmente o que se passava, nem como começara. Haviam decorrido quase dois anos desde que tinham sido veiculadas as primeiras e alarmantes notícias sobre um misterioso mal, semelhante a uma demência, que atacara subitamente a população de Maqueda, uma pequena e insignificante vila do centro do México. A princípio, inúmeras conjecturas foram feitas; havia quem aventasse a hipótese de que uma fuga de algum gás tivesse provocado aquela estranha reacção, outros pensaram que uma experiência biológica podia ter ficado fora de controlo. Mas a verdade era tão fugidia que ninguém a tinha ainda encontrado…”

V.A.D. em Derrocada.

Imagem: Oceano (www.zen41678.zen.co.uk/1420.jpg)

música: Save Me (Aimee Mann)

publicado por V.A.D. às 02:07
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Sexta-feira, 21 de Setembro de 2007

O Coração Das Trevas

“Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar era quente, espesso, muito pesado e mole. A luz solar não tinha alegria. Longos troços de rio deserto perdiam-se por lonjuras de enorme sombra. Nas margens de areia prateada, hipopótamos e crocodilos tomavam lado a lado banhos de sol. (…) Uma pessoa perdia-se naquele rio (…) e acabava por julgar-se vítima de um feitiço, isolada para sempre do que até ali conhecera, sei lá onde, muito longe, talvez noutra vida. (…) Era uma vida de silêncio que parecia não ter qualquer paz.”

Excerto de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, romancista de origem polaca. Nascido em 1857, viveu a traumática experiência da ocupação russa até conseguir a nacionalidade britânica em 1884. Nesta obra, que reflecte o choque entre colonizados e colonizadores, o autor conduz-nos às trevas da selva africana e, simultaneamente, às do coração humano.

Imagem: Zambeze (www.junglephotos.com/africa/afscenery/sunsets/zamsunset.jpg)

música: At The River (Groove Armada)

publicado por V.A.D. às 01:52
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